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Voluntárias escrevem cartas de amor em serviço no Poupatempo

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O computador disposto na mesa pode dar uma falsa impressão --os instrumentos de trabalho da enfermeira aposentada Vilma de Almeida, 69, são, na verdade, uma folha de papel pautado e uma caneta.

O conteúdo é ditado pelos usuários do serviço Escreve Cartas, implantado em 2001 no Poupatempo de Itaquera e no de Santo Amaro, por conta da grande concentração de migrantes e potenciais usuários nesses bairros. O foco é quem não sabe escrever ou tem dificuldade em se expressar.

Crédito: Lucas Lima/Folhapress As mãos da voluntária Sandra Lya de Melo, 59, do Escreve Cartas
As mãos da voluntária Sandra Lya de Melo, 59, do Escreve Cartas

"Se fizermos no computador, vamos descaracterizar o ato de escrever uma carta", conta Vilma, moradora de Itaquera e voluntária duas horas por semana desde 2001. A máquina ao lado acaba servindo para a redação de currículos, serviço também oferecido pelo programa. Apesar de terem as cartas como mote, os voluntários passam a maior parte do tempo preenchendo formulários do Poupatempo. "O novato acha que vai escrever cartas o dia todo e acaba frustrado."

Para participar, o interessado deve se inscrever --a última seleção, em abril, recebeu cerca de 50 fichas-- e passar por uma capacitação. O pré-requisito é ter caligrafia bonita. Segundo Marcelo Pedrosa, gerente do Poupatempo de Itaquera, foram feitos 260 mil atendimentos nas duas unidades desde 2001 --uma média de 69 por dia, entre cartas, currículos e formulários.

Os voluntários não ganham ajuda de custo. Mesmo assim, a coordenadora do serviço em Itaquera, Nancy Rost, 73, que passa dez horas por semana no local, espera ansiosamente pelas segundas-feiras. Há oito anos, essa rotina supre o tempo antes ocupado com turmas do ensino fundamental, para as quais ela lecionou de português a matemática.

A maior parte dos atendentes já está aposentada, mas há exceções. "Moro no Tatuapé, chego em dez minutos. Não custa nada ajudar", diz a artesã Fernanda Silva, 23, que bate ponto no local toda segunda de manhã. Em um ano, calcula ter escrito três ou quatro cartas.

FUNDAÇÃO CASA

Os veteranos são unânimes ao afirmar que as mensagens de cunho pessoal são poucas, mas boas. Além de Papai Noel, Dilma Rousseff, Gugu Liberato e Luciano Huck, o nome mais escrito no caderno de controle é o da cidade de Ferraz de Vasconcelos (SP), onde estão duas unidades da Fundação Casa (antiga Febem).

Mesmo recorrente, esse tipo de carta mexe com as voluntárias. "A mãe chega cabisbaixa, um pouco envergonhada", diz Vilma. "As pessoas se apegam à gente, querem voltar sempre com o mesmo voluntário para não ter de contar o problema de novo", conta a analista de sistemas aposentada Maria Antonieta Vinhas, 53.

Missivas de amor também saem do Escreve Cartas. Após se relacionar com duas pessoas que conheceu por correspondência em revistas, Sandra Lya de Melo, 59, é "expert" no assunto. Com esperança de que ela lhe dê sorte, o desempregado Adilson Franciso de Araújo, 45, senta à sua frente, no posto de Itaquera, e ouve descrições lidas em classificados amorosos --le é analfabeto e vai ao Poupatempo quase toda semana em busca de uma companheira.

"Quanto você tem de altura?", pergunta ela. "Dois metros", diz ele, acrescentando alguns centímetros. "Você não tem tudo isso!", retruca Lya, escrevendo, mesmo assim, a informação incorreta. "A única coisa que a gente pode mudar um pouco são os palavrões", argumenta Leila Antunes, 63, ex-coordenadora em Itaquera.

Na segunda passada, a sãopaulo visitou a unidade de Santo Amaro sem se identificar para utilizar o serviço. Cláudia, como o crachá a identificava, levou 15 minutos para redigir 25 linhas e conseguiu pôr em palavras os sentimentos descritos.

Atenciosa, ela explicou o que é o Escreve Cartas. A boa vontade, explica Nancy, é fundamental. Fora as pessoas irritadas com a burocracia no Poupatempo, boa parte dos usuários quer apenas atenção. "Algumas pessoas só querem alguém para conversar."

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