Factoides

HUMOR: Gente também é animal

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Em todos esses anos nesta indústria vital das redes sociais (desde 2004, acho, quando entrei no Orkut. Aliás, por onde anda? Um beijo pra você, Orkut), nunca vi o lado "aldeões com tochas" da internet tão em evidência quanto nesse caso dos beagles do Instituto Royal.

Você, que já viu filmes B sobre a Idade Média, conhece a cena: cai a noite e os habitantes da aldeia, enfurecidos com algum crime ou pecado, dirigem-se à autoridade do lugar carregando tochas, aos gritos de "QUEIMEM A BRUXA!". Não adianta nem tentar conversar: querem que a justiça seja feita e, caso as autoridades não a façam, eles mesmos se encarregam --é a bela tradição do linchamento, que é o modo de expressão característico da turba. Hoje, os aldeões com tochas têm 3G e banda larga, e o linchamento virtual é tão prático que nem suja as mãos.


Foi exatamente assim que muita gente se comportou no Twitter no caso dos beagles do instituto --e, de maneira mais ampla, na discussão dos testes com animais. Aqui cabe um parêntese fora do parêntese: conheço gente que trabalha com proteção aos animais e só posso admirar sua seriedade, seu empenho sincero e sua dedicação à causa. Além do mais, como qualquer pessoa em seu juízo perfeito, acho maus-tratos a bichos absolutamente inadmissíveis.

Mas suponhamos: e se a invasão do instituto tiver mesmo danificado ou destruído provas de maus-tratos, como a polícia disse? E se esses maus-tratos não tiverem existido, como alegam o instituto e algumas entidades científicas? E se, por puro acaso, polícia e Ministério Público estiverem mais bem equipados para investigar isso que os ativistas? E se a gente pressionasse o Estado a fazer direito seu trabalho, em vez de invadir e quebrar coisas? (Aguardo pra breve um disque-Black Bloc, pra gente pedir uma depredaçãozinha do jeito que hoje pede uma pizza.) E se não houver uma grande conspiração envolvendo cientistas sádicos, mídia e laboratórios?

Bastava fazer esse tipo de pergunta nas redes sociais pra ser apedrejado. Eu mesmo fui xingado por brincar dizendo que a mobilização para libertar os beagles, bichos fofinhos, parecia bem maior que a luta pelos ratos, que tiveram o supremo azar de nascer asquerosos. Outros amigos meus, que falavam sério, foram alvos de ataques e grosserias pesadas. E se alguém, diante de uma pessoa envolvida com esses testes, decidir passar à agressão não-virtual?

Crédito: Reuters Oh, que puxa. Vontade de deitar em cima da casinha e não sair
Oh, que puxa. Vontade de deitar em cima da casinha e não sair

E ai de você se apenas sugerir que os testes em animais, desde que sob regras rigorosas, são um mal necessário, sem o qual não teríamos medicamentos essenciais à vida (a propósito, recomendo este post, o mais sensato que li sobre o assunto, e as informações desta carta de um biólogo leitor de "O Globo"). Não adianta querer argumentar com quem só grita, com quem acha que os outros lados não devem ser ouvidos, com quem escreve "dane-se a lei" (não era "dane-se", mas recorri à dublagem da "Tela Quente" porque esta é uma coluna de família). Ora, se a lei é injusta, a democracia oferece mecanismos para mudá-la que são diferentes do coquetel molotov; se não é, há meios de exigir que ela seja cumprida sem tocar o "zaralho".

Não raro, esse é o mesmo tipo de gente que diz "ai-esse-Marco-Feliciano-que-horror". Sim, ele é um horror --e vocês não são melhores. Tivessem espelho em casa, enxergariam o próprio ódio, a intolerância, a devoção fanática, a total incapacidade de simplesmente ouvir --quanto mais compreender-- a opinião divergente, até quando essa divergência é mínima.

Já vejo o argumento "a minha causa é melhor!" ser arremessado como pedra. Também acho, mas qualquer fanático acha sua causa ótima a ponto de justificar que, por ela, se passe por cima dos outros. Quem sente a IRA SANTA dentro de si não pode transigir. Daí até que aqueles que discordam (ou seja, não cometem nenhum crime, punível com o rigor da lei; só pensam diferente) sejam tratados como monstros --não-pessoas, talvez até não-animais-- é um pulinho.

Não custa lembrar que a Justiça começou quando, em vez de gritar "QUEIMEM A BRUXA!", alguém resolveu escutar o que a bruxa tinha a dizer. Podia ser que ela fosse culpada mesmo, podia ser que não --mas era fundamental ouvir para julgar. Sei, de todo modo, que é perda de tempo discutir com quem se acha portador da Verdade revelada. Só peço que lembrem, de vez em quando, que gente também é animal e merece respeito. (Mas, por via das dúvidas, acho que vou passar a ir trabalhar fantasiado de Snoopy.)


RUY GOIABA sugere, humildemente, aos colegas jornalistas que também se fantasiem de Snoopy --quem sabe assim consigam evitar tanto o spray de pimenta da Força Nacional na cara quanto as porradas dos Black Blocs. (Este texto não foi testado em nenhum animal.)

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