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Como o guaraná se tornou bebida típica da região mais fria do Japão

Algumas marcas de guaraná são vendidas em Tóquio, nas lojas de produtos típicos de Hokkaido
Algumas marcas de guaraná são vendidas em Tóquio, nas lojas de produtos típicos de Hokkaido - Fatima Kamata/BBC News Brasil
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Fatima Kamata
Tóquio
BBC News Brasil

Refrigerantes à base de guaraná são raros em praticamente todo o Japão, mas não em Hokkaido, a província mais setentrional e fria do arquipélago, que se tornou referência desse tipo de bebida no país.

A geografia e o empenho de um grupo de pequenas e médias empresas 60 anos atrás ajudam a entender como ele foi parar no copo dos japoneses.

"Meus pais conheceram o guaraná antes da Coca-Cola, e acabaram se acostumando com o sabor. Eu também tomo desde criança", diz o japonês Shinsuke Hamada, de 43 anos.

Nascido e criado em Hokkaido, pelo menos uma vez por semana ele costuma comprar o refrigerante, seja em supermercados, lojas de conveniência ou em máquinas de venda automática, o que já não é possível para quem vive em outras províncias.

Muitas das marcas são produções locais, e quase todas trazem o mapa da província no rótulo como uma prova de que o guaraná tornou-se um orgulho de Hokkaido ao longo de 60 anos.

O primeiro refrigerante do gênero produzido em larga escala no Japão surgiu em 1960, quatro anos antes dos Jogos Olímpicos de Tóquio e na época em que o país começava a emergir das cinzas da guerra.

Para rebater críticas que recebia por manter a economia superavitária e por impor altas tarifas sobre produtos importados, o país permitiu a entrada da Coca-Cola, que aportou no Japão em 1957.

Em um curto espaço de tempo, os japoneses se apaixonaram pelo aroma único do refrigerante americano, levando à queda nas vendas de ramune (limonada gaseificada) e de cidra (soda), os refrigerantes produzidos na época pela indústria japonesa.

Para conter a investida do refrigerante americano, a Federação Nacional de Cooperativas de Produtores de Soft Drink do Japão foi em busca de uma alternativa capaz de disputar o mercado local com a Coca-Cola.

"Foi quando soubemos que no Brasil havia uma bebida consumida há muito tempo pela população e que batia de frente com a Coca-Cola", lembra Koichi Obara, atual presidente da Co-Up Co.

A empresa foi formada por 35 cooperados de várias províncias para desenvolver e comercializar uma marca unificada do primeiro refrigerante marrom made in Japan.

O produto foi batizado de Co-Up (do inglês "cooperation up") e é vendido até os dias de hoje, porém fabricado por apenas duas das empresas pioneiras: a Obara e a Hoppy Beverage.

Houve mudanças na receita e na embalagem. Segundo o diretor financeiro da Obara, Shinya Obara, a composição original tinha suco de maçã para suavizar o sabor único do guaraná.

Atualmente, a empresa usa xarope de milho com alto teor de frutose de batatas cultivadas na região. O nível de doçura é mantido desde o princípio, por agradar o público de Hokkaido.

"Talvez por ser uma região muito fria, as pessoas daqui gostem muito de coisas doces", afirma Obara.

Quando desenvolveram a marca unificada Co-Up, os produtores tinham outra preocupação. Queriam tanto se aproximar da Coca-Cola, que além da bebida ser escura, a embalagem ficou parecida.

Alguns anos antes de falecer em 2019, o empresário Koichi Ishiwatari (da Hoppy Beverage) contou que o grupo apostou em garrafas de vidro com formato inspirado em uma maiko (jovem dançarina que estuda para se tornar gueixa) para contrapor à da americana, que lembrava a silhueta de uma mulher de saia longa.

Atualmente, o guaraná desta e de marcas que surgiram depois é envasado em garrafas PET e em latas.

GUARANÁ À JAPONESA

O sabor que agrada os japoneses de Hokkaido é estranho para brasileiros como a manauara Karen Melo. "Os refrigerantes de guaraná que tomei eram menos doces que o do Brasil, e tinham gosto que lembrava remédio".

Há 25 anos ela veio do Amazonas para morar na província de Aichi (na região central do Japão) e mudou-se para Hokkaido (no extremo norte) há apenas 10 meses.

Além do frio, uma das primeiras surpresas que teve quando chegou no atual endereço foi encontrar guaraná em todo lugar. "Realmente, a bebida é popular entre os japoneses daqui", diz.

Um erro da Coca-Cola no passado teria ajudado o guaraná japonês a conquistar a popularidade regional.

A empresa americana conseguiu ampliar seu mercado assim que chegou no Japão, mas demorou três anos para chegar a Hokkaido —a segunda maior ilha japonesa, separada da principal Honshu por um estreito.

"Isso nos ajudou, porque nesse meio tempo o guaraná Co-Up se espalhou pela província", diz Koichi Obara.

Nas demais regiões, os cooperados enfrentaram resistência do mercado para conseguir colocar o guaraná nas prateleiras já ocupadas pela Coca-Cola.

Como eram empresas de pequeno e médio porte, a capacidade de produção era limitada. Mesmo assim, elas se lembram com orgulho da marca de 15 milhões de garrafas de Co-Up vendidas em um ano de pico, com Hokkaido puxando as vendas.

Um problema com a esterilização das garrafas ocorrido em uma das fábricas acabou afetando a imagem do produto e comprometendo as vendas.

Desestimuladas, muitas empresas desistiram da produção e venda da marca unificada de guaraná. A Obara se manteve fiel ao produto Co-Up e hoje detém 70% do mercado de guaraná em Hokkaido, segundo o diretor financeiro Shinya Obara.

O potencial desse mercado não passou despercebido por grandes empresas como a cervejaria Kirin e a Pokka Sapporo, donas da Kirin Guarana (sem acento) e da Ribbon Squash.

A rede de lojas de conveniência Seicomart também lançou o seu guaraná Secoma em julho de 2013, principalmente pensando em ampliar a lista de produtos de marca própria. Com os bons resultados, o objetivo agora é tornar a bebida conhecida fora de Hokkaido.

Além da venda online, promove o produto em feiras e exposições, de olho também nos mercados de Hong Kong, Estados Unidos, China e Rússia.

Na cidade de Furano é produzido o guaraná Heso (palavra japonesa que significa "umbigo", numa referência à localização, no centro da província de Hokkaido).

Até mesmo uma rede de hamburguerias da cidade de Hakodate produz o seu guaraná Lucky, adoçado com uva. Redes atacadistas como a Sapporo Ueshima Coffee têm a Hokkaido Guarana, e a Maruzen de Tomakomai criou o guaraná Ale com mel.

As matérias-primas principais podem ser as mesmas, mas o sabor final varia conforme cada fabricante. A empresa Godo, que faz parte do Grupo Oenon, produz o Hokkaido Highball Guarana, com 4% de teor alcoólico.

No verso da lata tem a explicação, em japonês, sobre a origem do guaraná como um grão do Amazonas. "Deixamos a bebida com um sabor adulto. Aprecie o sabor local de Hokkaido".

O guaraná brasileiro Antarctica também está no cardápio dos japoneses. Importado e distribuído pela empresa Arai Shoji desde 1980, o refrigerante pode ser comprado em sites online, lojas de produtos brasileiros e alguns supermercados, inclusive na província de Hokkaido.

Segundo a Japan Soft Drink Association, entre 2010 e 2019, o consumo per capita de bebida não alcoólica subiu de 145 litros para 180 litros.

Com essa marca, o Japão ocupa a sétima posição no ranking individual de soft drinks elaborado pelo instituto de pesquisa de mercado Euromonitor Internacional, que traz em primeiro lugar a China (410 litros) seguida dos Estados Unidos, e o Brasil na 10ª posição (114 litros por pessoa).

Entre os soft drinks preferidos dos japoneses, estão os vários tipos de chá vendidos em garrafas PETs, café em lata e água com gás.

O guaraná ainda está longe de figurar neste ranking, mas em Hokkaido há mais de 60 anos aparece como o refrigerante preferido de muitas famílias.

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