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A piada ofensiva que gerou primeira censura na internet e mudou a rede para sempre

Internet sem preconceito ou ódio?
Internet sem preconceito ou ódio? - Getty Images/BBC News Brasil
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Jon Ronson
BBC News Brasil

Esta é a história de uma guerra travada logo nos primórdios da internet. E o que estava em jogo era crucial: quem era o dono desse novo mundo, quem fazia as regras e quais elas seriam.

Na década de 1980, antes da invenção da World Wide Web, havia uma coisa nascente chamada Usenet. Era uma coleção de painéis de mensagens para o pequeno número de pessoas em instituições acadêmicas e tecnológicas que sabiam de sua existência. Gente como Brad Templeton, que até então usava o computador apenas para jogar e fazer planilhas.

"A Usenet foi uma epifania para mim. Entendi que o objetivo real, o uso mais importante dos computadores era conversar com outras pessoas", lembra Brad.

Havia páginas na Usenet dedicadas a conversas sobre ateísmo, sexo, vinhos ou tecnologia.

"Era como uma praça. Todas as noites, seu computador ligava para outros computadores e ligava tudo de novo com eles, e então você podia conversar com pessoas de todo o mundo."

UM PONTO

Brad acessou a Usenet por meio da Universidade de Waterloo, no Canadá, onde havia estudado, pois não era algo que alguém pudesse se conectar de casa.

Normalmente, um computador era necessário em um laboratório, empresa de informática ou universidade.

"Portanto, o público era altamente educado, geralmente bem de vida, provavelmente não tão etnicamente diverso e com conhecimento de tecnologia. Uma elite."

Eles foram pioneiros.

Para se ter uma ideia de quanto, certo dia, em 1982, Brad postou uma mensagem sugerindo que os emails seriam mais fáceis de ler se tivessem um ponto. Outros concordaram, e é por isso que nossos endereços de e-mail agora terminam em .com.

Mas Brad queria que seu legado da Usenet fosse mais divertido do que isso, então ele criou seu próprio quadro de mensagens dedicado ao humor, chamado rec.humor.funny (RHF), que rapidamente conquistou milhares de assinantes.

UMA PIADA POR DIA

As pessoas lhe mandavam piadas e as que ele achava mais engraçadas passavam a fazer parte de uma coleção da qual seu computador escolhia aleatoriamente uma e publicava todas as manhãs.

E um dia, uma delas fez dele um tipo diferente de pioneiro —a primeira pessoa na história registrada a ficar publicamente envergonhada por algo que fez online.

"Era uma piada baseada em estereótipos judeus e escoceses. E a aleatoriedade do computador optou por lançá-la em um dos aniversários da Kristallnacht, a Noite dos Cristais."

"O fato é que, quando foi divulgada, enfureceu um judeu do MIT (Massachusetts Institute of Technology) nos Estados Unidos", disse Brad.

Esse judeu era um britânico chamado Jonathan Richmond, que infelizmente morreu no ano passado. Ele morava no MIT com outro britânico que se lembra bem do incidente. Ele não queria ser identificado, então vamos chamá-lo de Amir.

"Éramos ambos sensíveis ao racismo e ao antissemitismo, por isso não era incomum sermos incomodados por esse tipo de coisa. Mas essa piada em particular nos afetou pessoalmente. Além disso, havia algo muito importante na data, pela Kristallnacht."

É por isso que Jonathan e Amir também se tornaram pioneiros —ninguém jamais havia tentado disciplinar o mundo online antes.

Jonathan apelou para a comunidade da Usenet, escrevendo que geralmente gostava de piadas que o faziam rir de si mesmo, mas não podia tolerar o humor preconceituoso associado à perseguição e assassinato.

Mas o pessoal da Usenet respondeu chamando-o de bobo e quase ninguém ficou do seu lado.

BOBO?

Se você acha que Jonathan e Amir estavam exagerando, Amir aprofunda um pouco o contexto.

"Meus pais vieram da África Oriental para o Reino Unido na década de 1960, quando havia placas nas janelas de casas e empresas anunciando que asiáticos e negros não eram aceitos. Fui atacado várias vezes nas ruas. Finalmente nos mudamos para o Canadá na década de 1980, em parte porque estávamos fartos dos abusos racistas."

Coincidentemente, antes de ir para o MIT, Amir frequentou a mesma universidade onde Brad postava suas piadas.

A Universidade de Waterloo costumava ser um banco de talentos.

"Além disso, era responsável por enviar mais graduados para a Microsoft —que era a maior empresa da época— do que qualquer outra universidade do planeta."

Assim, pareceu a Amir e Jonathan que a coisa toda era um mau presságio. Um tom estava sendo estabelecido naquele novo mundo que poderia afetar as gerações futuras.

"Eu sabia que minha universidade tinha um grande papel em todo o espaço da tecnologia da informação e que se algo assim não fosse controlado, teria um grande impacto negativo também, então teve que ser cortado pela raiz", diz Amir.

Mas suas tentativas tinham falhado até agora. Que recurso eles tiveram?

O QUARTO PODER

Eles tiveram a ideia de aproveitar a visita de Amir à namorada em Waterloo para conversar com o jornal local.

"Lembro que quando li essas piadas fiquei com o estômago embrulhado", diz a jornalista Luisa D'amato.

"Embora estivesse abordando o assunto com olhos de repórter, prestando a devida atenção a todos os lados da história, piadas como essa me faziam sentir marginalizada e difamada."

"Na grande mídia, se você não gosta de alguma coisa, pode reclamar para algum órgão que a regulamenta. Mas aquilo era como o Velho Oeste."

Depois de investigar, Luisa publicou um artigo intitulado "Sistema de computador da Universidade de Waterloo é usado para enviar piadas racistas".

"Foi constrangedor para a universidade. Eles não gostavam de estar na primeira página do jornal como envolvidos em racismo horrível e antissemitismo."

Mesmo assim, Brad foi inundado com mensagens de apoio de usuários da Usenet, além de uma carta de um nazista que havia lutado por Hitler e vivia no Canadá, dizendo a ele que era ótimo que as pessoas contassem piadas sobre judeus.

"A universidade anunciou quase imediatamente que não toleraria ser um centro para esse tipo de material ofensivo e suspendeu a conta de Brad Templeton", diz Luisa.

"Eu estava atormentado, não conseguia dormir bem", diz Brad.

Mas a vitória de Jonathan e Amir durou pouco, algo que a comunidade da Usenet poderia ter dito a eles de antemão.

NADA PARA FAZER

"Essa foi a primeira vez que vi alguém em uma posição de autoridade tentando banir algo na Usenet, e lembro-me de ter pensado: 'Que idiotas! Eles acham que podem banir. Não vai funcionar'", disse o pioneiro da Usenet e cientista da computação Brian Reed, que na época era professor assistente de engenharia elétrica na Universidade de Stanford, no coração do emergente Vale do Silício.

"Todos os tecnólogos entenderam que a internet não tinha censura. Foi projetada para ser assim. Se você fosse proibido de fazer algo, nada mudaria porque outras cem pessoas continuariam com a tarefa."

Vários usuários da Usenet se ofereceram para hospedar o site de Brad, que ele reativou imediatamente.

Mas a batalha não tinha acabado.

ENQUANTO ISSO, NA CALIFÓRNIA...

O destino da piada antissemita estava prestes a ser alvo de nova disputa, desta vez na Universidade de Stanford, onde o veredicto afetaria a vida de todos que já usaram as redes sociais.

Na década de 1980, o campus de Stanford era um lugar muito progressista. Mas havia um pequeno número de estudantes conservadores com um meio poderoso para fazer suas vozes serem ouvidas: o jornal Stanford Review.

Seu editor foi Peter Thiel, mais tarde fundador do PayPal, e também um dos primeiros investidores no Facebook, Airbnb, LinkedIn, Yelp e Spotify, que por décadas personificaria a cultura libertária do Vale do Silício.

Nas páginas do jornal, ele e sua equipe lamentaram o politicamente correto.

E um incidente desencadeou um conflito polarizador.

Enquanto tudo isso acontecia na Universidade de Waterloo, em Stanford, depois de uma conversa sobre se Beethoven era descendente de africanos, dois alunos que acharam a ideia ridícula pintaram feições estereotipadamente pretas em uma foto do músico e a colocaram na porta do quarto de outro aluno que estava defendia isso e era afro-americano.

Os dois alunos foram expulsos da residência universitária.

Houve marchas pedindo normas para proibir o ódio racial no campus, um tipo de ativismo que não era incomum nas universidades da época.

Mais incomum foi a reação dos estudantes conservadores que, por meio da Stanford Review, questionaram a expulsão dos dois estudantes por causa de um panfleto que poderia simplesmente ter sido jogado fora, e desafiaram o público perguntando se eles realmente acreditavam na liberdade de expressão.

Em meio a essa atmosfera tensa, uma usuária da Usenet chamada Jean Janice, que trabalhava no Centro de Computação da Universidade de Stanford, se conectou para ver a piada do dia de Brad Templeton.

Foi a piada antissemita.

MOMENTO CRUCIAL

"Achei engraçado e então começou todo o alvoroço para saber se aquele tipo de material deveria estar ali", lembra Jean.

Para ela, o fechamento do site de Brad por causa da piada era ridículo, e ela contou isso a seu chefe John Sack, o diretor do Data Center de Stanford, pensando que ele provavelmente também pensaria que era uma tempestade em um copo d'água.

Mas parecia mais sério para ele e ele decidiu falar com seus superiores.

John havia passado décadas nos bastidores em Stanford, procurando silenciosamente as melhores maneiras de publicar periódicos acadêmicos online. Mas naquele dia cabia a ele descobrir como Stanford deveria reagir à piada.

E como se tratava de Stanford no final dos anos 80, era um momento crucial na história. Stanford foi pioneira na implementação da ideia de que uma faculdade poderia criar empresas que se tornassem centros de excelência empresarial, o que realmente foi o nascimento do Vale do Silício.

E essas empresas se concentrariam em uma coisa.

"O uso de computadores estava começando em um contexto social, então estávamos navegando nas áreas cinzentas de quanto permitir que o computador fizesse por e para as pessoas", enfatiza John.

A piada de Brad seria o caso de prova perfeito. Os arquitetos da emergente internet estavam assistindo.

"O curso não estava claro. Eventualmente, teríamos que tomar uma decisão."

O PONTO FINAL

Após semanas de deliberação, foi anunciado que a página de Brad também seria banida em Stanford.

O motivo foi explicado em um ensaio detalhado e sincero. Em suma, o amor de Stanford pela liberdade de expressão importava menos do que sua busca coletiva por uma maneira melhor de cada pessoa ser reconhecida como um indivíduo, não uma caricatura.

Depois, o inferno desabou na forma de um gigante em Stanford, o agora falecido professor titular John McCarthy, um dos maiores nomes da computação na época e um dos fundadores do conceito de inteligência artificial.

Horrorizado, ele postou uma resposta feroz, chamando John Sack de um lacaio.

Lançou uma das primeiras petições online da história da Internet, coletando 100 assinaturas do corpo docente. Na época, como agora, o poder da petição online era formidável: a proibição da página de piadas de Brad foi rapidamente revertida.

O argumento vencedor de John McCarthy se resumiu a: "Estamos explorando a tecnologia de ponta da computação. Precisamos descobrir os limites do viés da liberdade de expressão encontrando-os. Ou cruzando-os".

E essa é a internet com a qual vivemos: uma utopia de engenheiros libertários em que a liberdade de expressão floresceu independentemente dos perigos que pudesse causar à sociedade.

Perigos que não são apenas palavras ofensivas, mas também notícias falsas.

E como a liberdade de expressão irrestrita leva a conflitos que mantêm as pessoas online por mais tempo do que a harmonia, é uma ideologia lucrativa para empresas de tecnologia.

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