Apresentadora da BBC revela infância com pai violento: 'Entendo quem tem pânico de ficar em casa'
Eu tinha sorte de poder escapar às vezes para a casa do meu melhor amigo para sair do caminho dele. E, no dia seguinte meu pai, iria trabalhar novamente, e eu iria para a escola, o que significava uma trégua da gritaria perturbadora e da violência cruel.
Me lembro que todo o meu corpo ficava tenso todas as vezes que eu ouvia o barulho da chave do meu pai abrindo a porta dos fundos. Qual seria o humor dele quando voltasse do trabalho? Ele provocaria uma discussão? Isso o levaria a me bater, me chicotear com o cinto ou apenas a me dar um tapa na nuca?
Eu tinha sorte de poder escapar às vezes para a casa do meu melhor amigo para sair do caminho dele. E, no dia seguinte meu pai, iria trabalhar novamente, e eu iria para a escola, o que significava uma trégua da gritaria perturbadora e da violência cruel.
O amor em nossas vidas veio da minha mãe incrível, que fez tudo o que pôde para compensar as falhas dele.
Esse texto contém descrições de episódios de violência que alguns leitores podem considerar perturbadoras.
Quando o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, pediu para que todos ficassem em casa por causa do coronavírus, um dos meus primeiros pensamentos foi sobre aqueles que vivem em famílias abusivas: mulheres, homens e crianças, essencialmente presos, forçados a ficar dentro de casa semana após semana. O que aconteceria com eles?
Passar os últimos meses descobrindo detalhes de histórias sobre a realidade da violência doméstica sob confinamento tem sido chocante, mas também me deu oportunidade de conhecer mulheres que escaparam corajosamente durante as circunstâncias mais desafiadoras.
Passei um tempo dentro de abrigos lotados, encontrando funcionários de apoio que estavam sob pressão e conversando com pessoas que foram submetidas a níveis de abuso muitas vezes nunca experimentado antes.
Jess (nome fictício para sua proteção) estava com o marido violento havia muitos anos. Durante seu relacionamento, ele a agrediu várias vezes —socando-a, estrangulando-a, controlando o que ela usava e como ela penteava seu cabelo.
Ela conta que já precisou pedir permissão a ele para fazer um chá e até ir ao banheiro. Mas quando a quarentena foi imposta, a violência escalou para níveis mais extremos.
Como a maioria dos britânicos, Jess e o marido viram Boris Johnson instruindo a nação a ficar em casa para impedir a disseminação da covid-19. Foi então que o marido se virou para ela e disse de maneira assustadora: "Que os jogos comecem".
Sua história é uma das mais brutais que já ouvi. Ela me disse que o marido a estuprou mais de cem vezes. "As cortinas ficavam fechadas, a TV ficava alta, a porta da frente trancada, a música era aumentada para que ninguém pudesse me ouvir gritando", lembra ela. Ele queimou a parte superior de suas pernas com cigarros "para que ninguém a quisesse".
O programa de televisão Panorama, exibido pela BBC no Reino Unido, mostrou recentemente que a intensidade dos abusos e episódios de violência doméstica aumentaram durante o confinamento social —os crimes incluíam envenenamento e estrangulamento.
O Women's Aid (instituição britânica beneficente, de apoio às mulheres) tem trabalhado no primeiro projeto de pesquisa aprofundada sobre o efeito do confinamento para a violência doméstica.
Na pesquisa, quase dois terços das pessoas que vivem com o agressor disseram que a violência piorou durante a quarentena. Três quartos afirmaram que o confinamento tornou mais difícil para eles escapar da violência..
Enquanto isso, as ligações para a Respect Men's Advice Line (serviço que atende vítimas masculinas) aumentaram 65% durante os primeiros três meses de restrições. Para alguns, a pandemia foi usada por seu agressor como uma forma de controle.
Quando perguntei a Jess o que a mensagem 'Fique em Casa' significava para ela, a resposta foi a seguinte: "Morte".
Após três semanas em confinamento, seu marido ameaçou: "Hoje será o último dia em que você verá a luz do dia". Ela sabia que precisava sair de casa ou sua saída seria "em uma caixa de madeira", diz.
Quando eu tinha cerca de 12 anos, lembro-me de correr para a delegacia depois que meu pai trancou minha mãe em seu quarto e começou a espancá-la. Fiquei com medo de que ele fosse matá-la.
Nosso telefone foi cortado porque ele não pagou a conta —outra forma de tentar nos isolar de amigos e familiares. Corri o mais rápido que pude por cerca de um quilômetro e meio até a delegacia e, sem fôlego, implorei ao policial atrás da mesa que viesse ajudar.
Mas, na quarentena, algumas pessoas em relacionamentos abusivos e violentos lutaram para pegar o telefone e discar o número de emergência, porque o agressor estava em casa 24 horas por dia, sete dias por semana.
Jess sabia que precisava entrar em contato com a polícia de alguma forma para salvar sua vida, mas não podia deixar o marido desconfiado.
Enquanto ele dormia no sofá, ela pesquisou no Google 'como entrar em contato com a polícia sem ligar', com medo de que ele acordasse. Depois de enviar uma mensagem de texto para um sistema de atendimento online e receber uma resposta inicial, ela enviou seu endereço. Os oficiais chegaram em minutos.
Nas primeiras sete semanas de confinamento no Reino Unido, a polícia recebeu um pedido de ajuda de vítimas de violência doméstica a cada 30 segundos —tanto mulheres quanto homens.
Após impor restrições para circulação de pessoas, o governo do Reino Unido demorou 19 dias para anunciar uma campanha nas mídias sociais para encorajar as pessoas a denunciarem abusos domésticos, bem como a dispoibilização de £ 2 milhões extras (cerca de R$ 14 bilhões) para linhas de ajuda contra violência doméstica.
Fiona Dwyer, executiva-chefe da Solace, um dos maiores fornecedores de espaços de refúgio para vítimas, me disse: "A inércia e lentidão do governo em responder transformou um período incrivelmente difícil em ainda mais desafiador".
"Se você olhar para quem estava no gabinete do governo, veria um monte de homens muito privilegiados. Então, talvez não seja uma questão em que eles pensem", diz ela.
Não conheci nenhum sobrevivente, trabalhador de entidades beneficentes ou ativista contra violência doméstica que dissesse ter visto qualquer sinal de que o governo da Inglaterra considerou quais seriam os efeitos da quarentena para aqueles que vivem em uma casa com problemas de abuso.
Mas a ministra Victoria Atkins, da área de proteção social, negou que o governo tenha sido lento demais para agir.
O governo estava "atento aos riscos de violência doméstica", falava com instituições de caridade no início e forneceu, segundo Atkins, "respostas (em termos de atendimento), intensamente".
Nas quase três semanas entre a introdução da quarentena e o lançamento da campanha "You Are Not Alone" ("Você não está sozinho", em tradução livre) pelo governo, 11 mulheres, duas crianças e um homem foram mortos em supostos casos de violência doméstica.
A responsabilidade por essas mortes é dos assassinos, mas será que vidas poderiam ter sido salvas se o governo tivesse agido mais rapidamente?
"Haverá tempo para refletir sobre as lições a serem aprendidas com a pandemia", disse. Atkins.
Ela afirmou que está trabalhando para eliminar o prazo que exigia que as instituições de caridade gastassem até outubro o financiamento governamental de emergência que receberam.
REFÚGIO
Jess teve que sair de casa e sua única opção era tentar encontrar um lugar como refúgio. Sua vida foi transformada desde que chegou a um abrigo no País de Gales, administrado pela instituição de caridade Llamau —no local ela recebe apoio de uma equipe dedicada e pode conversar com outros sobreviventes.
O Reino Unido enfrenta potencialmente um novo pico de coronavírus e mais bloqueios locais à medida que o inverno se aproxima.
Fiona Dwyer, da Solace, disse que o governo precisa garantir que haja "financiamento sustentável robusto para serviços futuros".
Meus pais se divorciaram quando eu tinha 16 anos. Foi quando escapamos da violência. Mas nem todos os sobreviventes de violência doméstica saem de casa. Por que eles deveriam? Outros não podem sair porque têm medo de que seus agressores os procurem; muitos simplesmente não podem ir porque não são financeiramente independentes.
Para quem, como Jess, deu esse passo durante a quarentena, foi algo libertador. "Eu me sinto segura. Não me sinto ameaçada. Posso ir para a cama à noite sabendo que nada vai acontecer comigo."
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