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Descrição de chapéu The New York Times

Bares lésbicos somem das ruas dos EUA, mas ressurgem com destaque em séries de TV

Criar Hold Up, em 'Batwoman', foi como ressuscitar essa cultura, diz Caroline Dries

A heroína de 'Batwoman' (Ruby Rose, no centro, com Elle Scantlin, à esq., e Meagan Tandy) abriu um bar de lésbicas para irritar um vizinho homofóbico

A heroína de 'Batwoman' (Ruby Rose, no centro, com Elle Scantlin, à esq., e Meagan Tandy) abriu um bar de lésbicas para irritar um vizinho homofóbico Bettina Strauss/CW;NYT

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Lena Wilson

The Palms. Hershee Bar. The Hideaway. Railroad Crossing. The Normandie Room. Oxwood Inn. The Hold Up. Dana’s. Vida. Esses três últimos bares lésbicos são os únicos que continuam abertos. E todos são fictícios.

Caroline Dries, que comanda a série "Batwoman", na rede CW, lembra bem dos bares que fecharam. No começo da década de 2000, ela descobriu uma comunidade em Los Angeles, em lugares como The Palms, onde a mulher com quem ela se casou costumava trabalhar, e o Normandie Room. À medida que esses espaços desapareciam, aos poucos –o Normandie Room fechou em 2009, o Palms em 2013–, a sensação, nas palavras de Dries, era como a de “ver derrubada uma árvore que você plantou".

Criar o Hold Up, em "Batwoman", foi em parte uma oportunidade de ressuscitar essa cultura, ela disse –ao menos para as mulheres de Gotham City. Para ela, foi uma experiência surreal, e muito pessoal, ver o bar ganhar vida. "Lembro-me de estar no cenário com Holly Dale, nossa produtora e diretora, que também é lésbica", recorda Dries, "e de dizer que lá estávamos nós, em um cenário que custou centenas de milhares de dólares, e eu não podia acreditar que estivéssemos em um bar gay".

"Batwoman" não é a única série que vem realizando esse tipo de fantasia. Com a queda no número de bares lésbicos nos Estados Unidos –e as dificuldades econômicas que os restantes enfrentam por causa da pandemia do coronavírus–, pelo menos três séries de TV em cartaz imaginam mundos nos quais, a despeito dos supervilões, do aburguesamento de bairros boêmios e da incerteza financeira, não estamos a ponto de pedir a última rodada.

Em "Batwoman", a super-heroína lésbica Kate Kane (interpretada por Ruby Rose) abre o Hold Up para irritar um restaurateur homófobo cuja casa fica do outro lado da rua. Em “Vida”, que está em sua terceira e última temporada no canal Starz, as irmãs Emma e Lyn (Mishel Prada e Melissa Barrera) operam o bar que dá título à série, em Los Angeles.

E em "The L World: Generation Q.", do Showtime, renovado em janeiro para uma segunda temporada, Shane (Katherine Moennig) compra um bar de esporte e o transforma no Dana’s, batizado em homenagem a uma personagem muito querida da série original.

Movidos em parte pela nostalgia e em parte por motivos práticos (é útil ter um cenário no qual todos os personagens possam se encontrar), esses bares fictícios são refúgios estáveis e inclusivos, e servem como substituto às muitas casas noturnas do mundo real que desapareceram nas últimas décadas. Eles também trazem à memória o tipo de lugar no qual, em muitos casos, membros das equipes e do elenco das séries se assumiram como gays, e encontraram apoio.

"Não me surpreende que você diga que todas essas séries estão fazendo o mesmo", disse Dries. A cultura dos bares lésbicos, ela acrescenta, “é aquela na qual nos assumimos; eles formavam nossa comunidade”.

O Hold Up, o Dana’s e o Vida não são as únicas casas desse tipo na TV. Na década de 1990, Roseanne foi beijada por outra mulher em um bar chamado Lips. Ellen deu seu primeiro beijo em sua parceira romântica em um bar lotada de mulheres que flertavam animadamente. Mas os bares lésbicos dessas séries do passado retratam uma realidade que veio a mudar consideravelmente.

Bares gays de todos os tipos sofreram um declínio nas últimas décadas, mas os bares lésbicos provavelmente sempre foram mais vulneráveis que suas versões masculinas. A desigualdade de renda significa que, historicamente, a renda disponível das mulheres era mais baixa, e especialistas apontam que a cultura da vida noturna é tradicionalmente menos vigorosa entre a lésbicas. (Nas palavras de Nico, a bartender interpretada por Roberta Colindrez que é a parceira romântica de Emma em “Vida”, “nós viramos pessoas muito caseiras e quase não saímos mais”.)

A ascensão das comunidades online e a aceitação legal das uniões entre pessoas do mesmo sexo serviram para colocar os bares lésbicos em risco ainda maior, de acordo com historiadores e projetos de pesquisa consultados para este artigo. Quando as mulheres passaram a se sentir mais livres para paquerar outras mulheres em ambientes mistos, e quando mesmo mulheres que continuam no armário têm facilidade para encontrar comunidades online, os bares se tornaram parte menos importante da vida social lésbica.

Isto é, o senso de progresso social vem acompanhado de alguma tristeza, por causa do desaparecimento de espaços lésbicos específicos. Em “The L Word: Generation Q”, a produtora da série, Marja-Lewis Ryan, quis criar uma Los Angeles idílica na qual a cena lésbica não ficasse relegada a espaços improvisados e a noites para mulheres em bares gays masculinos. “O que tentei fazer foi imaginar um mundo no qual as lésbicas mais bacanas de LA decidissem criar um lugar seguro para todas nós”, disse Ryan.

O Dana’s, o Vida e o Hold Up refletem uma virada cultural mais ampla em direção a uma diversidade e fluidez maiores nos espaços LGBTQ. Como a maioria dos bares lésbicos na vida real, eles são dirigidos por lésbicas e foram criados de forma a que elas possam frequentá-los em segurança. Mas da mesma forma que o elenco de “L World” foi expandido para a versão repaginada “Generation Q” –o “L” significa lésbica, e o “Q”, queer–, os bares da ficção, como muitas de suas contrapartes na vida real foram criados para atender a todo tipo de pessoa.

À medida que as novas gerações adotam o termo “queer”, “lésbica”, um termo associado a um gênero específico, está saindo de moda. A expressão “bar lésbico” é raramente usada nas novas séries. As personagens de “Vida” usam termos como “espaço seguro” ou definem a casa como “um bar para garotas como nós”, ao descrever o Vida, que foi deixado para Emma e Lyn por sua mãe, que era gay em segredo, e fica em Boyle Heights, um bairro predominantemente hispânico. “É um bar lésbico mas também é um bar queer, e um bar misto”, disse Colindrez. “E também um bar de bairro, um lugar no qual latinos de toda espécie podem ir para curtir e para serem eles mesmos”.

Embora alguns bares lésbicos possam estar se expandindo, o número deles encolheu drasticamente. De acordo com Greggor Mattson, professor associado de sociologia no Oberlin College que pesquisa sobre o fechamento de bares lésbicos com ajuda do Damron, um guia de viagem que se concentra em estabelecimentos que recebem bem os gays, o número de bares lésbicos que o guia registra nos Estados Unidos caiu a 15 em 2019, ante 31 em 2007. (Os bares gays masculinos caíram de 699 a 387 no mesmo período.) Em 1987, o guia registrava 206 bares lésbicos,

Alexis Clements, cujo documentário “All We’ve Got”, de 2009, estuda os espaços queer para mulheres nos Estados Unidos, disse acreditar que o aburguesamento de bairros boêmios é um fator importante no fechamento de bares lésbicos. Com a alta dos preços dos imóveis nas grandes cidades, “o bar não consegue mais bancar o aluguel, e aquelas pessoas que viviam a poucos quarteirões de distância do bar já não moram em San Francisco”.

Algumas séries de TV tratam diretamente desse fenômeno. Nas duas primeiras temporadas de “Vida”, o aburguesamento e problemas de dinheiro ameaçaram fechar o bar. Em “The Bold Type”, do canal Freeform, exibida no ano passado, a protagonista, Kat (Aisha Dee), tentou sem sucesso salvar seu bar lésbico favorito de ser transformado em um condomínio residencial. “Não ter tantos desses lugares ainda abertos me parece uma perda”, disse Amanda Lasher, supervisora de “The Bold Type” em suas segunda e terceira temporadas. “E você sabe que sentimos ainda mais esse problema agora”, ela disse. “O isolamento pode ser difícil."

É difícil imaginar vida noturna em meio a uma pandemia. Mas quando os encontros online perderem o charme, e mesmo os mais dedicados dos introvertidos se virem sonhando com o fim da quarentena, há esperança de que os bares lésbicos capazes de sobreviver ao confinamento voltem a se tornar pontos de encontro quentes.

“Considero absolutamente provável que haja uma retomada dos bares de mulheres, por conta do desejo das pessoas de se reunirem”, disse Bonnie Morris, professora de história da mulher que documentou as mudanças na cultura lésbica no livro “The Disappearing L.” “Acho que haverá muita socialização e celebração da vida, em 2021”.

Por enquanto os oásis arco-íris na TV devem ajudar a ocupar o vazio dos bares lésbicos fechados, que há muito oferecem segurança e apoio emocional às frequentadoras. E mesmo esses refúgios fictícios parecem estar em declínio, pelo menos em curto prazo. Quando “Vida” acabar, em junho, as audiências perderão mais um desses espaços. O cenário do bar, construído em um estúdio de Los Angeles, foi desmontado meses atrás.

Um dos traços mais proeminentes do cenário era o que Tanya Saracho, a produtora de “Vida”, descreveu como “parede das memórias lésbicas”. Cartões de loteria gay estão pendurados ao lado de adesivos “amor é amor” e entre fotos de mulheres se beijando; fotos das amigas lésbicas e queer da equipe da série se espalham entre grafitos carinhosos: corações apaixonados e nomes de casais. “Este é o seu bar”, diz Nico a Emma no final da segunda temporada. “Essa parede? Ela diz que estamos em um lugar seguro."

No fim, pode ser que os bares da TV sobrevivam ao fim das séries. Eles já parecem estar respondendo a – ou talvez redespertando– uma necessidade insatisfeita. Antes do confinamento, um grupo de fãs de Los Angeles decidiu arrendar o Semi-Tropic, o bar do Echo Park em que algumas das cenas do Dana’s foram filmadas em “Generation Q”, para uma festa mensal dedicada ao bar da série. As festas que o grupo organiza para assistir “The L World” continuam firmes no Zoom.

Moennig, cuja personagem em “Generation Q” abriu o Dana’s, disse que os eventos no Semi-Tropic mostram o quanto os bares lésbicos “podem ser importantes para nossa comunidade”. “Não acho que eu tenha ido a um bar nos últimos 10 anos”, disse Moennig. Mas o distanciamento social a levou a reconsiderar a importância dos bares como espaços de reunião. “Quando o mundo voltar ao normal”, ela disse, “:eu talvez vá a um bar só para sentir a normalidade”.

The New York Times

Tradução de Paulo Migliacci. 

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