Pessoas trans têm o direito de gozar e não existem só para o seu deleite
O fetiche cis sobre corpos transgêneros invisibiliza prazer e o desejo deles
Tenho pensado muito sobre desejo. Sobre o que realmente queremos na vida e no sexo, para além de pegar geral, dar uma gozada ou de ter um emprego bem remunerado, um carro, uma casa grande.
Sexualmente, o desejo reprimido muitas vezes é desviante da "norma" e por isso precisa ser sufocado ou realizado às escondidas. Porém, às vezes, o desejo sexual invisibilizado não é nada de tão diferente assim: é "apenas" afeto. E tenho refletido sobre como as pessoas trans são colocadas como objeto do fetiche obscuro ou da curiosidade intrometida de outras pessoas ao mesmo tempo em que o desejo, a afetividade, o prazer e a existência delas são tratados como irrelevantes.
Ilustrativo disso é que pornografia trans é a categoria mais buscada no Brasil, segundo estatísticas do site de vídeos adultos PornHub. Mas é um país violento com essas pessoas. Um levantamento da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) aponta que 131 trans foram assassinades em 2022, isso tornaria o Brasil mais letal para esse grupo, mas cabe apontar que muitos países não fazem esse levantamento e é difícil ter uma base de comparação.
Pensando nisso, pretendo escrever nos próximos meses colunas sobre esse assunto. Começo a partir de uma conversa que tive com uma mulher que passou pela cirurgia de transição. Para ser uma mulher trans não é necessário passar por esse procedimento, elas podem ser mulheres com pau. A regra é que você, cis, não pergunte se elas operaram. É invasivo e reduz o corpo dessas pessoas à sua bisbilhotice. Se ela quiser, ela te fala.
A artista visual Sanni Est é brasileira e mora na Europa há 16 anos. Foi lá que ela começou seu processo de transição, aos 18 anos —dois anos depois fez a operação.
Morando em Berlim, uma cidade que abraçou o não binarismo de gênero, ela frequentemente é vista como "binária" por outras pessoas por ter optado pela cirurgia, e se vê em uma condição em que seu corpo é questionado pelos normativos e pelos moderninhos. A visão de parte desse grupo é de que, se gênero é construção social e você pode ser mulher e ter pênis, para que ter uma vagina? Ou ainda, por que não negar a ideia de gênero como um todo?
Mas a experiência pessoal de Sanni segue outra linha da concepção de gênero. É íntima e tem a ver com identidade; é biológica e tem a ver com o corpo; é social e tem a ver com como ela se apresenta e é vista pelo mundo. Não, ela não acha que ser mulher é apenas uma "sensação" ou uma vontade de ter buceta e vestir saia. É biopsicossocial e abarca todas essas questões.
Na época, Sanni não conhecia pessoas trans. Foi uma decisão muito solitária porque não tinha outras pessoas como ela para conversar sobre o processo que estava passando, acolhimento que hoje considera importantíssimo.
Com um namorado gay, antes da transição, teve as primeiras transas realmente satisfatórias. Justamente porque tinha afetividade, respeito pela maneira como ela queria transar, pelos limites que ela impunha. Não era aquela coisa imediatista, apressada. Foi nessa relação que se entendeu trans. O namoro terminou antes de ela transicionar, mas ela continuou contando com o apoio do ex.
A operação de Sanni foi feita com um método em que os nervos penianos são ligados ao clitóris construído pelo cirurgião. Após pós-operatório da cirurgia, contudo, ela passou alguns anos isolada, fazendo sexo casual. Foi depois de anos que ela passou a transar com mais frequência e intimidade, quando encontrou um homem heterossexual que a respeitasse como trans. Hoje ela consegue curtir o sexo com penetração e alcança o orgasmo com estimulação do clitóris. Ela sente mais prazer na relação dedicada e amorosa, e se sente à vontade para tentar coisas diferentes depois de conhecer bem o parceiro.
No entanto, ela se incomoda com o fato de que muitas pessoas querem transar com ela de forma fetichizada ou porque querem saber como é transar com uma trans com vagina, não porque sentem atração por ela enquanto indivíduo. Ou ainda: homens querem fazer sexo com ela para cumprir o checklist da desconstrução. Marcar lá na carteirinha de homem sem preconceitos "transei com uma trans".
À medida que ouvi o que ela tinha a dizer, me identifiquei mais do que esperava. Também já me senti muito fetichizada, desde a infância –qual mulher não? E sinto que muitos homens se interessam em sair comigo para que eu seja a caçamba de desconstrução deles (aqui não, irmão).
Outra coisa que me tocou muito foi Sanni dizer que não aguenta mais ser chamada a falar sobre ser uma artista trans, ainda que a questão da transgeneridade perpasse seu trabalho. Também não aguento mais ser chamada para falar sobre "mulheres nos quadrinhos" ou "mulher na literatura". Queremos falar sobre nossos processos criativos, sobre nosso trabalho, não apenas sobre nossa questão identitária. É hora de escritores homens falarem sobre literatura masculina e artistas cis discutirem como a cisgeneridade interfere em suas obras. Eu gostaria de saber.
Sanni começou a estudar em um conservatório de música aos 11 anos. Sua obra mais recente é o álbum "Photophobia", um projeto que integra canções compostas por ela com audiovisual e também inclui performances e artigos. Demorou sete anos para ficar pronto e traz um recado bem claro de que ela existe e dane-se o que os outros tentam lhe impor. Se manifesta contra colonialismo, patriarcado, capitalismo. Senti que a obra conversa muito com meu próprio trabalho como artista, que se encaixa no movimento female rage, em que mulheres estão falando tudo o que estava entalado e usando a arte como forma de se vingar de anos de opressão. O site dela é este aqui.
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