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Rosana Hermann

A Casa da Noção Abandonada

TV aberta chega por último e tenta 'sentar na janelinha' no caso dos Bonetti

Arte do podcast A Mulher da Casa Abandonada - Catarina Pignato
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No dia 8 de junho de 2022, a Folha lançou o podcast A Mulher da Casa Abandonada, escrito e apresentado por Chico Felitti.

Fiquei imediatamente interessada, não só porque gosto de tudo que o Chico faz, mas também porque nunca imaginei que imóvel fosse habitado, muito menos que moradora estivesse ligada a um crime. E olha que eu moro a 400 metros da casa. Há quase trinta anos.

Ouvi o primeiro episódio e fiquei revoltadíssima. Como assim a moradora é fugitiva do FBI? Como assim ela e o marido praticamente escravizaram uma pessoa nos Estados Unidos??? Como assim ele foi preso e ela nunca pagou por nada que fez???

Indignada, comecei a pesquisar obsessivamente sobre a herdeira da elite paulistana que está sempre com a cara inteira coberta por uma pomada branca e vive em condições tão horríveis quanto seu passado.

Logo descobri que a obsessão era geral. No Twitter, no WhatsApp, no meu grupo de corrida, só se falava no podcast. Na casa. Na mulher. No crime. Entrei para um grupo de Telegram com vinte mil pessoas, que passam dia e noite revirando a internet em busca de informações sobre o "casal Bonetti".

O podcast se alastrou como fogo no mato seco. A casa abandonada virou ponto turístico. A cada dia tinha mais gente na calçada tirando fotos, selfies, parando carro para olhar, fazendo vídeos, transmissões ao vivo, querendo pular o muro para pegar abacate. Gente fazendo dancinhas de TikTok em frente a uma casa onde vive uma mulher envolvida num crime escravista!

Quando a pauta ganhou massa crítica, surgiu ela, que sempre chega por último e quer sentar na janelinha: a TV aberta.

Com as reportagens para telejornais locais e a absurda repercussão do caso, veio a notícia de que a mulher da casa abandonada, havia... Abandonado a casa.

Entra em cena o Instituto de Luisa Mell, que invade a casa com a polícia e resgata os cães que ficaram para trás. Fiquei feliz pelos cachorros, que sabidamente, são melhores que muita gente.

E, então, surgem os programas sensacionalistas, que tratam notícia como filme de terror e sonorizam reportagens com acordes tétricos que, em vez de informar os cidadãos, só amedrontam os telespectadores.

Eu estava no grupo do Telegram quando soube que uma emissora ia entrar ao vivo, direto da casa. Fui até lá verificar. A equipe estava lá. Eu conhecia alguns dos profissionais. Avisei ao grupo que iam entrar mesmo ao vivo. E começou o show de horrores. Não da equipe de externa, mas do âncora e seu comentarista no estúdio.

O âncora e o comentarista claramente não tinham nem ouvido o podcast. Mostravam fotos antigas como se fossem de agora. Transformaram um caso gravíssimo de exploração humana numa história de suspense. A herdeira virou "a mulher da cara pintada". O crime deixou de ser a exploração e abuso de uma mulher negra, praticamente mantida em cárcere privado como escrava, para virar "o mistério" da mansão. Chegaram a falar em fantasmas. Duvidaram que a moradora tivesse saído. Ficaram meia hora mostrando o reflexo de uma luz na sala. O âncora levantou a possibilidade de haver CORPOS no porão. O "escada" do apresentador viu um quadro velho e podre na parede e disse que "valia milhões porque é arte".

Minha vontade era botar um tênis, correr 400 metros em 3 minutos, arrancar o microfone do repórter que estava ao vivo e gritar no ar: "Não é nada dissooooooo!!!!!". Mas meus berros teriam sido abafados pelos helicópteros que sobrevoavam minha cabeça, porque, sim, tinha "imagens aéreas da mansão assombrada".

Foi vergonhoso. Dados errados, achismos sem fundamento. Um horror. O resultado? A matéria foi pico de audiência do dia na emissora. A resposta? Outra matéria no dia seguinte, com a técnica João Kleber do "o que eu tenho na caixa" na versão "será que a foto é mesmo da mulher de cara pintada?". Nós, telespectadores, com nossa audiência, alimentamos o monstro da desinformação.

A Mulher da Casa Abandonada é um sucesso. Chico Felitti é um gênio. E, se alguém quiser fazer um podcast de sucesso sobre a emissora que faz sensacionalismo barato, já temos o nome: A Casa da Noção Abandonada.

Rosana Hermann

Rosana Hermann é jornalista, roteirista de TV desde 1983 e produtora de conteúdo.

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