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Cinema e Séries
Descrição de chapéu The New York Times Filmes

Como 'Pantera Negra' construiu personagens complexos com base na política da colonização

Franquia tem heróis e vilões que refletem questões enfrentadas por pessoas pretas em todo o mundo

Elenco no cartaz de divulgação de 'Pantera Negra: Wakanda Para Sempre' Divulgação

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Maya Phillips
The New York Times

Que ingredientes fazem um herói ou um vilão? Apesar das tantas tentativas por franquias cinematográficas de retratar de modo mais nuançado a dicotomia entre o bem e o mal, as fórmulas usadas para esses personagens, especialmente no Universo Cinematográfico Marvel, parecem dolorosamente redutivas: os heróis fazem discursos sobre justiça e lutam ao som de uma música-tema valente e inspiradora. Os vilões? Eles acham que são deuses, mesmo quando se vestem com mais elegância do que os mocinhos.

Uma notável exceção são os filmes "Pantera Negra", que imbuem seus heróis e vilões de uma complexidade que deriva de questões políticas relacionadas à colonização e à diáspora africana. Nesses filmes, a linha que separa heróis e vilões não é só uma separação entre o bem e o mal; é uma fronteira definida pela forma com que cada um dos lados reage ao verdadeiro inimigo: as nações brancas e as instituições que se beneficiam da escravidão e da privação de direitos das pessoas não brancas, e é fácil para os espectadores se identificarem com essas posturas.

"Pantera Negra" e especialmente sua continuação recentemente lançada, "Pantera Negra: Wakanda para Sempre", exibem uma reverência por seus heróis que está enraizada no legado familiar e cultural. T'Challa (Chadwick Boseman), o rei de Wakanda (e super-herói nas horas vagas) tem sua linhagem como base de apoio e como pedra fundamental; Além de sua mãe e irmã, que servem como fundação moral para ele, seu pai e os Panteras Negras que o precederam exercem a mesma função. É notável que a cerimônia pela qual alguém se torna o próximo Pantera Negra envolva ser sepultado e conversar com os ancestrais em busca de orientação.

"Pantera Negra: Wakanda para Sempre" começa com a morte de T'Challa (vítima de uma doença, como Boseman, que morreu de câncer em 2020). O filme homenageia T'Challa com uma sequência funerária lindamente filmada e coreografada. E é claro que a cena não serve apenas para estabelecer uma base emocional para o filme. "Pantera Negra: Wakanda para Sempre" homenageia Boseman, mostrando clipes do primeiro filme e permitindo que os outros personagens lidem plenamente com sua dor, para que a morte dele não se torne apenas mais uma reviravolta no enredo ou uma questão que a narrativa precisa contornar

Em "Pantera Negra", a empatia e equilíbrio da personalidade de T'Challa é temperada por suas posições políticas, ocasionalmente menos que resolutas. A princípio, ele segue a política de sua família, de manter Wakanda e seus recursos isolados do mundo exterior. Depois, sua decisão de revelar a existência de Wakanda, no final do filme, desencadeia uma cadeia de eventos que leva ao conflito central da continuação. A morte prematura de Boseman e, portanto, de T'Challa, desperta a questão de como o Pantera Negra teria evoluído como rei: como ele teria governado Wakanda, dada sua decisão de abandonar a atitude isolacionista da nação e abri-la ao mundo?

A continuação astutamente transfere essa pesada questão a Shuri (Letitia Wright), em quem o filme também confia para portar nossa raiva e tristeza pela morte de T'Challa. Para tornar-se a Pantera Negra, ela tem que superar aqueles sentimentos —simbolizados pelo aparecimento de Killmonger, o antagonista do primeiro filme, em uma visão que ela recebe quando come a Erva em Forma de Coração.

Seu pesar é reconhecível. Na ausência de T'Challa, Wakanda começa a se parecer com as numerosas comunidades negras nas quais às mulheres cabe o luto, e depois assumir o comando, quando os homens morrem, vítimas da saúde precária ou da violência. É claro que Shuri se sente injustiçada e passa o filme sendo instada a controlar sua raiva. "Pantera Negra: Wakanda para Sempre" está bem ciente do estereótipo da mulher negra furiosa e o sobrepuja, fazendo com que Shuri aprenda a usar sua raiva e a trabalhar com ela, evoluindo até se tornar a heroína, no final.

Por outro lado, os vilões dos filmes "Pantera Negra" não são inimigos claros, mas vítimas de racismo estrutural: Killmonger, no original, e Namor, na continuação, são os dois homens não brancos, enraivecidos com razão, que estão respondendo à maneira pela qual suas comunidades foram prejudicadas por muitos dos grandes "ismos" (entre os quais capitalismo, colonialismo e, uma vez mais, o racismo). Killmonger, que cresceu em Oakland, Califórnia, sem pai e com todas as desvantagens de ser um homem negro nos Estados Unidos, quer usar a tecnologia de Wakanda para dar poder aos negros em todo o mundo. Seu plano é violento, mas não está distante das facções mais extremas do movimento Black Power nos anos 60 (foi naquela época que um grupo de Panteras Negras, equipados com armas de fogo, protestou diante da sede do Legislativo da Califórnia, dizendo que "chegou a hora de o povo negro se armar").

Namor, o rei de Talokan, uma civilização subaquática ao estilo de Atlantis, formada por povos indígenas, é uma vítima direta da colonização e testemunhou a escravização de seu povo. Ele teme que Talokan possa ser descoberto agora que os Estados Unidos e seus aliados estão em busca de vibranium. Será que seu povo estará em risco de exploração e violência por parte das nações brancas, como consequência da decisão de T'Challa de revelar Wakanda e seus recursos?

Em determinado nível, os conflitos nesses filmes são insulares: comunidades não brancas são lançadas umas contra as outras, o que é muito mais realista do que um robô malvado ou um sujeito grandalhão e roxo que resolve devorar metade do universo. Mas em "Pantera Negra: Wakanda para Sempre", embora a grande batalha seja entre Wakanda e Talokan, os verdadeiros vilões são os países que estão em busca de vibranium, em sua luta pelo poder. Em uma cena no começo do filme, que se passa na sede das Nações Unidas, a rainha Ramonda confronta diplomatas que exigem acesso ao vibranium; seus países enviaram agentes infiltrados para atacar as instalações de vibranium de Wakanda e estão procurando no oceano por outras possíveis reservas do metal, com o objetivo de usá-lo para desenvolver ainda mais seus armamentos.

Em "Pantera Negra", o filme oferece pistas falsas aos espectadores ao destacar o papel de Ulysses Klaue, um dos principais inimigos do Pantera Negra e o filho de um nazista verdadeiro nos quadrinhos originais. Klaue tem o perfil perfeito para ser o vilão da história: ele é um mestre do crime, e um especulador sombrio que vende armas e artefatos, muitos deles originários de Wakanda. Um filme mais previsível teria feito dele o grande vilão e traria Killmonger como seu capanga —um homem negro enganado pela raiva, mas ainda assim capaz de se redimir no final. Ao assassinar Klaue, Killmonger pode tê-lo suplantado como o antagonista, mas a realidade é que a fonte da fúria e da política militante de Killmonger são as desigualdades raciais da sociedade, exploradas por Klaue, pelos europeus e por outros que veem o povo negro principalmente como um meio de construir riqueza, uma situação que remonta ao comércio transatlântico de escravos.

Quando Shuri é forçada a confrontar Killmonger, o que significa confrontar a parte dela que está zangada, ferida e endurecida pela dor, o filme implica que essa é uma dualidade comum entre os negros, hoje, e que devemos ao mesmo tempo manter nosso senso pessoal de dignidade e retidão, como verdadeiros cidadãos de Wakanda, e nossa indignação e senso de vergonha, como Killmonger. Isso faz de qualquer um de nós menos que um herói? Não, dizem os dois filmes, porque, no final, ainda há um Pantera Negra para proteger a nação.

Nos filmes, o verdadeiro vilão é uma história de opressão branca e poder branco, mas o inimigo —seja ele outra pessoa não branca, ou uma pessoa negra que a diáspora tenha levado a outro lugar—, na verdade, joga no nosso time.

Tradução de Paulo Migliacci

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