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Jacob Anderson (à esq.) e Sam Reid, que interpretam Louis e Lestat na nova adaptação de "Entrevista com o Vampiro" Clement Pascal - 26.set.22/The New York Times

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Erik Piepenburg
Chalmette, Louisiana
The New York Times

Em março, os atores Jacob Anderson e Sam Reid tinham acabado de filmar uma cena, dentro de um estúdio cavernoso na paróquia de St. Bernard, na Louisiana, que fica a cerca de 20 minutos de carro do French Quarter de Nova Orleans. O ar da noite era escaldante, e eles pareciam exaustos por conta de um calendário de gravações que os obrigava a manter horário de vampiro, o tempo todo sob refletores quentes.

Os dois emitiam uma espécie de brilho enquanto falavam, e não só por causa das lentes de contato pintadas à mão que os faziam parecer tigres —ou adeptos das raves.

O brilho se devia também a os dois estarem exatamente onde queriam: dois homens que se descrevem como outsiders na adolescência, dotados de uma afinidade especial pelo lado mais sombrio da arte –no caso de Reid, os demônios literários de Edgar Allan Poe, e no Anderson as trilhas sonoras espectrais do Portishead. E lá estavam eles, anos mais tarde, vestidos com roupas da era do ragtime para interpretar dois dos desajustados mais queridos da cultura pop: Lestat e Louis, do romance "Entrevista com o Vampiro", de Anne Rice, em uma nova adaptação televisiva da história que estreou semana passada nos Estados Unidos na AMC.

"Sou um nerd e tenho muito orgulho disso", disse Anderson, 32, que interpreta Louis, um vampiro relutante. "Amo fantasia. Sou emo. E também um pouco gótico, acho. Para mim, isso é um sonho". (Os fãs de "Game of Thrones" conhecem o ator britânico por sua interpretação de Grey Worm, o líder dos Imaculados.)

Reid, 35, tinha uma sensibilidade parecida, quando adolescente. Na infância, na Austrália, ele gostava de se vestir de vampiro para o Halloween, e mais tarde devorou as abrangentes sagas de sangue e magia de Rice. Ele disse que interpretar o elegante Lestat era uma responsabilidade, e que ele queria respeitar ao máximo a autora, que morreu quase um ano atrás, aos 80 anos.

"Quando você ama o material de origem e sempre foi fã de alguma coisa, coloca sobre si mesmo a mesma pressão que outras pessoas que amam o livro colocariam", ele disse. "A pressão para mim é fazer justiça a algo que amo muito".

E existe pressão. Em uma época dominada por universos cinematográficos e televisivos passíveis de expansão ilimitada, como os da Marvel e "Star Wars", a AMC teria muito a ganhar com o sucesso do programa; a rede, que adquiriu os direitos de "Entrevista com o Vampiro" e outros 17 romances de Rice, de duas de suas séries literárias, planeja transformar esse catálogo em pelo menos cinco novas séries durante os próximos 10 anos.

Talvez o mais importante é que a série precisa tentar não alienar uma enorme base de fãs preexistente. "Entrevista com o Vampiro" é a primeira vez que o livro de Rice foi transformado em uma série de televisão, e é a primeira grande adaptação de Rice desde que ela morreu, deixando para trás mais de 40 livros que ajudaram a definir seu gênero de literatura e um público muito dedicado —e muito protetor.

Com base nos episódios que pude ver com antecedência, a série não só adapta o romance como o altera fundamentalmente, deslocando a linha do tempo da história central mais de um século para a frente, substituindo as sugestões de homoerotismo do livro por sexo gay puro e simples, e mudando a identidade racial de personagens principais, entre outras mudanças.

Se considerarmos as reações negativas, muitas das quais pedantes e racistas, às prequelas de "O Senhor dos Anéis", na Amazon, e de "Game of Thrones", a nova versão de "Entrevista com o Vampiro" com certeza trará os "trolls" à tona –na verdade, já o fez. A série também terá de competir com a adaptação cinematográfica do livro por Neil Jordan, em 1994 –que, independentemente de suas falhas, fez enorme sucesso e ajudou a cimentar na imaginação do público a imagem de Tom Cruise como Lestat e Brad Pitt como Louis.

Rolin Jones ("Perry Mason", "Weeds"), o criador e showrunner da série, disse em uma entrevista por vídeo no mês passado que sabia que haveria detratores. Mas ele também insistiu que a série continua a ter "extrema reverência" ao espírito e à prosa do livro, que ele definiu como uma "peça essencial da literatura americana".

O que confere grandeza ao romance "é a vida interior", ele argumentou, mas "isso não facilita a tarefa de manter a dramaticidade o tempo todo". O truque, assim, foi tentar encontrar novas maneiras de exteriorizar esse drama para uma audiência de TV moderna, como ele imaginava que Rice poderia ter desejado.

Enquanto ele e os outros roteiristas trabalhavam, Jones sempre manteve essa questão em mente: "O que faria aquela escritora selvagem em 1976 se estivesse na sala conosco agora?". "Há algo inerente a essa história que quer ser revisitado a cada geração", ele acrescentou. Fazê-lo, disse Jones, "é uma celebração de Anne, não uma profanação".

Publicado em 1976, "Entrevista com o Vampiro" é uma das histórias de vampiros mais lidas no mundo, e sem dúvida a mais influente desde "Drácula", de Bram Stoker, que saiu em 1897. A história do nobre francês Lestat de Lioncourt, uma elegante mistura de sedutor e atormentador, e Louis de Pointe du Lac, o homem mais jovem que ele transforma em seu companheiro morto-vivo, vendeu milhões de cópias e impulsionou cerca de uma dúzia de continuações, conhecidas coletivamente como "Vampire Chronicles", cujas vendas combinadas chegam a dezenas de milhões de cópias adicionais.

O livro de Rice inovou ao fazer com que os vampiros parecessem mais humanos, disse Stanley Stepanic, professor assistente de línguas e literatura eslava que leciona um curso chamado "Drácula", na Universidade da Virgínia. Isso se aplica especialmente ao narrador da história, Louis.

"Ela contou a história a partir de uma perspectiva de primeira pessoa, falando na voz dele [Louis] pela maioria do livro", disse Stepanic. "E ele parece arrependido".

Quando a AMC anunciou em 2020 que havia adquirido os direitos de "Entrevista com o Vampiro", Rice classificou a transação como "um dos negócios mais significativos e emocionantes da minha longa carreira".

Ela não se envolveu criativamente na série, mas o que surgiu dois anos depois –o título completo do programa é "Anne Rice’s Interview With the Vampire"– mantém a lealdade ao material de origem, de muitas maneiras. (A temporada um se baseia em uma parte do primeiro romance.) Ainda temos uma entrevista com um vampiro, um romance eterno traiçoeiro, uma filha incontrolável e um monstruoso sugador de sangue. Nova Orleans, a cidade natal de Rice, é a locação central.

Mas a série também é mais romântica: enquanto o livro original funcionava em tom homoerótico, na série Louis e Lestat são incontestavelmente um casal gay. A série é sombriamente cômica, sangrenta, às vezes brutal e, a depender da tolerância do telespectador ao horror, pode ser apavorante. Há sexo gay e bissexual, ménages à trois, muita carne. E muito suor.

Jones descreveu o programa como "Cassavetes com muito sentimento e sem botões de edição", ou "como um álbum meio bruto de Fiona Apple sobre uma história de vampiros", mas com pais vampiros gays envolvidos "na relação mais tóxica de 2022". A AMC, disse ele, "gastou um caminhão de dinheiro para criar uma beleza realmente estranha".

Durante uma caminhada sossegada pelo set, em março, Jones mostrou algumas das mudanças. A equipe construiu uma rua que lembrasse Storyville, um bairro de prostituição elegante que existia em Nova Orleans –mas em 1910, e não no século 18, como no romance. Os tetos altos de uma cobertura elegante foram concebidos com base no moderno Dubai, e é lá que Louis se encontra novamente com o repórter (interpretado por Eric Bogosian) que, no livro, o havia entrevistado décadas antes, nos anos 70, em São Francisco.

Jones acompanhou da cadeira do diretor uma cena de Bailey Bass, 18, no papel de Claudia. No romance, Claudia é uma menina de cinco anos de idade, que Lestat transforma em uma espécie de filha vampira para ele e Louis. Na série, ela tem 14 anos de idade, condenada a amadurecer emocionalmente enquanto prisioneira de um corpo no início da puberdade.

E há a identidade racial dos personagens. Louis não é mais branco, como o romance fortemente indica que seja. (O personagem é dono de uma plantação na Louisiana e dono de escravos, quando conhece Lestat em 1791.) Na série, Louis é um dono de bordel "creole" e frequenta a sociedade branca; no episódio piloto, ele lamenta por não poder ser "um homem negro abertamente gay".

Lestat continua a ser branco, o que cria um casal multirracial. Jones disse que as mudanças que adotou em geral tinham a ver com "o que funciona para uma temporada e uma série", especialmente no caso de Louis. "Você não pode pensar só no primeiro episódio, mas na temporada cinco", ele disse. "Eu queria uma pessoa muito complicada e, por fim, egoísta, e não um inocente simpático e doce".

Pitt interpretou Louis como um vampiro relutante, exatamente o que ele é no romance, mas essa não foi a principal razão para que alguns fãs, especialmente os "queers", não gostassem do filme. Curtis Herr, professor de inglês na Universidade de Kutztown e um dos editores do Journal of Dracula Studies, que publica artigos sobre a história e literatura de vampiros, disse que o filme foi covarde demais para contar a história gay "que é muito evidente no livro".

(Em uma breve entrevista por telefone, Jordan disse que não tinha feito coisa alguma para minimizar intencionalmente a homossexualidade ou qualquer outra coisa do livro. Quanto ao conteúdo gay, ele disse: "Se você ler o livro, perceberá que ele é tão gay quanto o filme".)

Pelo que sabia sobre a nova série até agora, Herr disse que "vamos receber o ‘Entrevista com o Vampiro’ que merecemos".

Os fãs de Rice aguardam ansiosamente há dois anos para descobrir o que a série da AMC tem a oferecer e, à medida que diversos trailers e informações sobre a produção surgiam, as reações nos sites dos fãs variavam do fervor a fúria. Alguns integrantes de um grupo privado do Facebook dedicado a "Entrevista com o Vampiro" ficaram tão irritados que o administrador teve que alertar os membros de que os comentários tinham "se tornado tóxicos demais, ao discutir a nova série". (Nem o administrador nem diversas das pessoas que postaram comentários negativos responderam a pedidos de comentários.)

Outros, como Mary Hütter, 46, editora de vídeo em Grand Rapids, Michigan, e leitora de Rice durante quase toda a sua vida, disseram estar aguardando ansiosamente a série. Quando o assunto é a série, os membros das comunidades online sobre Anne Rice de que ela faz parte "são, em sua maioria, muito gays", ela disse. A esperança, acrescentou, é que a série seja mais "etérea, gótica, com uma história muito sedutora, quase de amor, entre Lestat e Louis".

Jones disse que também ficaria apreensivo se alguém tomasse um de seus livros favoritos e o transformasse em alguma coisa nova. E o que acontece se os fãs de Rice assistirem e não gostarem das "linhas gerais daquilo que fizemos?". "Eles podem me dar uma surra na próxima ComicCon", disse Jones com um sorriso sarcástico.

Qualquer que seja seu teor, a conversa entre os fãs sobre a série é quase certamente uma vantagem, já que "Entrevista com o Vampiro" está chegando ao mercado em meio a uma safra incomumente vasta de novos vampiros –programas que, como a série, atualizam e diversificam o antigo mito, entre os quais "Let the Right One In", do Showtime, "Vampire Academy", do Peacock, e a comédia "Reginald the Vampire", do SyFy. No canal FX, a série de humor "What We Do In the Shadows" continua popular, e já foi renovada para uma quinta e sexta temporadas.

Com seus temas atemporais, o mito do vampiro obviamente provou ser uma estrutura excepcionalmente flexível e durável, passível de infinitas mudanças de formato —pode ser que exista uma história de vampiro para cada pessoa que se sinta um outsider, como Anderson sentia na adolescência.

"Espero que as pessoas vejam que esses personagens, que têm sentimentos tão profundos de vergonha, dor e culpa, não são monstros, embora se sintam como monstros", ele disse em uma segunda entrevista por vídeo em agosto. "Espero que as pessoas vejam a história como uma celebração da busca da aceitação de si mesmo, e percebam que a busca de significado não é uma futilidade".

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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