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Lucy and Desi Reprodução

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Dina Gachman
The New York Times

No começo de "Lucy and Desi" (Amazon Prime Video), novo documentário dirigido por Amy Poehler, ouvimos uma gravação em áudio. Nela, Lucille Ball agradece ao seu marido, Desi Arnaz, pelos dois filhos bonitos e saudáveis do casal.

Não se trata exatamente de uma declaração chocante, vinda de uma mulher nos Estados Unidos da década de 1950. O que surpreende é que Ball encerra sua fala agradecendo o marido por sua "liberdade". É um dos muitos momentos do filme que podem levar aqueles que acham que conhecem a história desse casal a prestar mais atenção.

Para Poehler, atriz e comediante cuja vida pessoal e profissional fica ocasionalmente sujeita às atenções dos jornais sensacionalistas, a admissão notável de Ball foi uma das muitas revelações que a levaram a observar de mais perto o relacionamento de um dos casais mais reconhecíveis de Hollywood.

Em parte por conta da popularidade duradoura da série "I Love Lucy", Ball e Arnaz, que interpretavam Lucy e Ricky Ricardo, vieram a representar uma variedade específica de casal apaixonado e de casamento feliz, para gerações de espectadores. Como muitos casamentos, no entanto, a união deles estava longe de ser perfeita.

Quando Poehler foi procurada pelas produtoras Imagine Entertainment e White Horse Pictures para fazer um documentário sobre Ball e Arnaz, ela não estava interessada em fazer um filme no qual "pessoas engraçadas falam sobre como todo mundo era engraçado", mas em lugar disso desejava conversar com pessoas que conheceram um dos dois ou ambos –como seus filhos, Lucie Arnaz e Desi Arnaz Jr., ou Carol Burnett e Bette Midler. Poehler não queria retratar Ball como um gênio da comédia, mas como uma mulher real cujo casamento de 20 anos de duração foi a um só tempo complexo, amoroso, doloroso e terno.

Em uma entrevista telefônica recente, feita enquanto ela caminhava por Nova York, Poehler discutiu as maneiras pelas quais Ball e Arnaz derrubaram barreiras, deram forma à cultura e provaram que um casamento não precisa durar para sempre para ser visto como um sucesso. Abaixo, trechos editados de nossa conversa.

Quando Lucy agradece ao marido pelos filhos e por sua "liberdade", é um momento notável. Qual foi sua reação ao ouvir aquilo?
Amy Poehler - Eu não esperava aquela palavra. Não sei exatamente o que ela quis dizer, mas gosto de pensar que o que ela expressou foi gratidão por sua liberdade financeira. Uma mulher de mais de 40 anos e um imigrante e refugiado de Cuba muitas vezes não eram as pessoas que estavam na sala quando os grandes negócios aconteciam, e por isso, para ela, a liberdade financeira era muito importante. Ela cresceu na pobreza, e Desi tinha uma vida privilegiada em Cuba, e passou pela experiência traumática de perder tudo e ter de fugir de seu país. Por isso, os dois se preocupavam com ter trabalho e sustentar a família. Acho que conquistar essa segurança cria uma espécie de liberdade. E também acredito que eles amavam um ao outro pelo que realmente eram.

Você tinha alguma reserva quanto a assumir o comando do projeto?
Amy Poehler - Eu estava tentando descobrir, como cineasta, qual seria minha porta de entrada, meu ponto de vista. Acho que, quando você trata de pessoas famosas e realizadas, as palavras "pioneiro" e "gênio" são usadas com frequência exagerada e a sensação é a de... OK. Já tivemos tributos demais. Fiquei entusiasmada ao conversar com a Imagine e a White Horse, e disse que basicamente havia um par de coisas que gostaria de tentar evitar. Uma era passar o filme inteiro mostrando depoimentos de pessoas engraçadas sobre como todo mundo na série era engraçado. Eu queria fazer um filme com os pés no chão. E então percebi que era a história de amor deles que, com sorte, convenceria as pessoas a continuar assistindo.

As imagens e as gravações a que você teve acesso eram muito íntimas, e muitas nunca tinham sido vistas ou ouvidas pelo público. Qual foi o volume de gravações em áudio de época a que você teve acesso?
Amy Poehler - Eram horas e horas de material. Uma de nossas produtoras foi à casa de Lucie [a filha de Ball], apontou para uma caixa e perguntou o que havia lá dentro. Foi como um momento gênio da garrafa, encontrar todas aquelas fitas. Se você está fazendo um documentário, percebe que você e o editor [Robert Martinez, cujos créditos também incluem "The Bee Gees: How Can You Mend a Broken Heart"] são como duas pessoas em um bote salva-vidas. Havia material até demais, e esse foi o fator mais complicado. Quando tomamos a decisão de permitir que Lucy e Desi contassem a história (por meio das fitas), tudo mudou, porque aquilo não só os fazia parecer vivos como mostrava que eles envelheceram ao longo do período que o filme cobre. Mesmo que eu acredite firmemente que quase todo narrador não merece confiança completa, creio que é possível aprender muito com aquilo que as pessoas não dizem, e isso é tão importante quanto aquilo que elas dizem. A maneira pela qual eles falavam um sobre o outro me comovia, todas as vezes.

O filme oferece a sensação de que, por um lado, eles mantinham à tona uma versão do casamento "felizes para sempre", bem ao modo da década de 1950, mas fora das câmeras, pelo menos mais tarde em sua união, eles tiveram problemas. Às vezes é difícil conciliar isso e o Ricky e Lucy que vemos na televisão.
Amy Poehler - A televisão é uma mídia íntima, a que você assiste muitas vezes com sua família, e eles estiveram entre os primeiros a inventar a ideia de ruptura e reparo, ou seja, Lucy às vezes fazia pão demais, ou Ricky se esquecia do aniversário dela ou qualquer que seja a dificuldade, e quando você pensa que não há maneira de consertar a situação, eles encontram uma solução no final e tudo fica bem. Existia um anseio profundo, especialmente nos Estados Unidos do pós-guerra, naquela época, por descobrir se as coisas podem ser consertadas, se vamos todos ficar bem, se a família vai se manter unida. E o que realmente me empolga é que eles estavam passando por coisas muito humanas e complicadas, que quase todo mundo enfrenta nos momentos de sucesso e dentro do casamento. Você sabe, todas as coisas que podem acontecer na vida de uma pessoa.

Você discutiu com os produtores ou seu editor sobre o casamento deles ou sobre os motivos para que aquele relacionamento ecoe nas audiências modernas?
Amy Poehler - Sim, tentamos realmente desconstruir a ideia de uma parceria e propor questões sobre o que faz de um casamento um sucesso. O que Desi e Lucy fazem em suas vidas é trabalhar muito, tanto neles mesmos quanto em sua arte. O que eles criam juntos é maravilhoso. E os dois continuam a criar em separado, respeitando um ao outro e encontrando maneiras de trabalhar juntos. Assim, fica sempre aquela questão de o que é uma parceria bem-sucedida? Amei conversar com Laura LaPlaca, diretora do Departamento Carl Reiner de Arquivos e Preservação, no Comedy Center, porque foi ela que disse que o país simplesmente não aceitou o divórcio deles. Os Estados Unidos simplesmente disseram não. Mas eles mostraram o que era se divorciar e demonstrar respeito um pelo outro. Estavam desbravando uma trilha. Se eu tivesse tido o privilégio de conversar com qualquer um deles, teria descoberto que provavelmente estavam simplesmente vivendo suas vidas, humanas e complicadas. Não estavam tentando deliberadamente fazer nada daquilo.

Desi morreu em 1986. Lucie, a filha deles, conta uma história comovente sobre unir a família para ver velhos episódios de "I Love Lucy" que, de alguma forma, é um "felizes para sempre", embora muito agridoce. O que essa história significou para você, e o que você acha que isso tem a dizer sobre o casamento dos dois e sobre a ideia de "felizes para sempre"?
Amy Poehler - Lucy disse que, depois de eles se divorciarem, os dois começaram a ser muito mais gentis um com o outro. Como cultura, nós somos obcecados pela ideia do "até que a morte os separe". Mas a ideia não é a de que, em seu leito de morte, você queira dizer às pessoas que as ama? O objetivo é ter um casamento infeliz mas que dure décadas ou formar uma união e parceria para criar coisas interessantes juntos, e manter o máximo de amor e respeito um pelo outro? Lucy e Desi trabalharam com muito afinco e, no momento em que alguém lhes deu uma oportunidade, eles se deram as mãos e arriscaram o salto, juntos. A sensação é quase a de que foram astronautas.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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