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Michael Gandolfini Instagram/mgandolfini

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The New York Times

Quando Michael Gandolfini, 22, estava filmando seu papel em “The Many Saints of Newark”, um drama de época no qual ele foi escalado para o papel de um precoce encrenqueiro adolescente chamado Tony Soprano, ele começou a ter problemas para dormir, e ficava acordado até a madrugada, decorando as cenas que faria no dia seguinte.

Às vezes ele refletia sobre as motivações de seu personagem, cuja lealdade se divide entre duas figuras paternas: o pai, um gângster de Nova Jersey frequentemente ausente conhecido como Johnny Boy; e o protagonista do filme, um carismático mafioso chamado Dickie Moltisanti.

Como parte de seus esforços para incorporar o personagem, Gandolfini tentava se identificar com o desejo de Tony de satisfazer os dois homens. Ele se via retornando constantemente a Johnny Boy, e repetia sem parar um desejo, como se fosse um mantra.

Como Gandolfini recordou recentemente, “o que eu repetia sem parar era que quero que meu pai se orgulhe de mim, quero que meu pai se orgulhe de mim”. Não foi preciso um psiquiatra para decifrar o que aquilo queria dizer. “É claro que aquela era uma voz que existia dentro de mim”, disse Gandolfini.

Ele é filho do ator James Gandolfini, que interpretou o ameaçador mas inegavelmente fascinante chefe mafioso Tony Soprano nas seis temporadas da reverenciada série “Família Soprano”, da HBO; James Gandolfini morreu repentinamente de um ataque cardíaco, aos 51 anos em 2013.

Michael Gandolfini herdou muitos dos traços de seu famoso pai. Os dois têm olhos parecidos, profundos, e sorrisos com um traço de sarcasmo; como o pai, Gandolfini fala baixo mas seu vocabulário é pesado, e ele admite que de vez em quando seu gênio não é dos mais pacatos.

E quando Gandolfini –nascido quatro meses depois da estreia de “Família Soprano” em 1999, e que mal tinha assistido à série antes de começar a se preparar para “The Many Saints of Newark”– pensa no pai, o que lhe vem à memória não é Tony Soprano, o personagem grandioso. O que ele recorda é James Gandolfini, a pessoa.

Michael Gandolfini lembra com carinho os momentos de diversão de que eles compartilharam, resmunga sobre as lições de vida que seu pai ministrava, admira o trabalho dele como ator, e sente falta dele como qualquer filho sentiria, especialmente tendo em vista sua partida prematura.

“Eu não estava ciente do legado dele, na verdade”, disse Gandolfini. “Para mim, meu pai era só meu pai”. Agora que está seguindo carreira como ator, com razoável sucesso, Gandolfini está se vinculando consciente e irrevogavelmente ao pai, em “The Many Saints of Newark”.

No trabalho mais importante que fez até agora em sua carreira, ele assumiu o papel que definiu a carreira de James Gandolfini –um dos personagens mais comentados e influentes da história da televisão–, em uma versão mais jovem e mais inocente.

E essa decisão traz exigências –atender às expectativas da audiência e fazer jus ao padrão estabelecido pelo seu pai–, que Gandolfini levou em conta ao tomar sua decisão. Mas existe uma responsabilidade adicional que ele não tinha considerado antes de começar a fazer o filme.

“A pressão é real”, ele disse. “Há medo. Mas a segunda camada, sobre a qual muita gente não pensa, e na verdade foi mais difícil, envolve como interpretar Tony Soprano”. Ao aceitar o papel, disse Gandolfini, “eu tinha não só de lidar com o sentimento de assumir um papel de meu pai, mas também de lidar com o fato de que Tony Soprano é um personagem difícil para [palavrão]”.

Certa manhã quente de setembro, Gandolfini, ostentando uma barba rala e usando uma camisa de veludo, estava caminhando pelo bairro nova-iorquino de Tribeca, onde ele morou quando criança, e passou pelo beco pavimentado com paralelepípedos onde aprendeu a andar de bicicleta e pelas lojas a que ia depois de ganhar de presente seu primeiro celular, programado com os números de seu pai e de sua mãe, aos oito ou nove anos de idade.

Ainda que seu pai e sua mãe, Marcy, tenham se divorciado quando ele tinha três anos, o pai continuou a estar presente em sua vida. Às vezes o jovem Michael Gandolfini o acompanhava aos bares que o pai frequentava com os amigos.

Mas o mais comum era Gandolfini fazer tarefas que o pai lhe dava: “Aparar gramados, limpar meu quarto por US$ 5 [cerca de R$ 27], ir aos abrigos servir comida aos moradores de rua –eu resmungava muito quando fazia tudo isso”, ele disse.

A despeito da fama que seu pai conquistou com “Família Soprano”, Gandolfini disse que não tinha muito interesse pela série. “Lembro-me de perguntar para ele, aos 13 anos, o que diabos era aquilo, e por que todo mundo falava sem parar a respeito. E ele me respondeu que era a história de um mafioso que entra em terapia; e, sei lá, foi só isso”.

Michael Gandolfini fez o primeiro e o segundo graus em Los Angeles, e voltou à cidade para estudar teatro na Universidade de Nova York. A profissão, ele diz, o atraiu não porque tinha sido a de seu pai, mas porque ele queria descobrir se era capaz de fazer o trabalho.

“Eu queria muito descobrir a resposta”, disse Gandolfini. “Como fazer aquilo –como fazer aquela transformação? Sou bom? Não sou? Vou subir ao palco e passar vergonha? O medo era um indicador de que aquilo era alguma coisa que eu queria”.

Mas em seu primeiro semestre na Tisch School of Arts, disse Gandolfini, “minha sensação era a de que carregava um alvo nas costas”. Ele se sentia inseguro e solitário, não conseguiu encontrar uma comunidade junto aos demais estudantes, e estava sempre pronto a contestar os professores. (“Gosto um pouco de discutir”, disse Gandolfini, com um sorriso. “Acho divertido”.)

Em lugar disso, ele se transferiu para a Gallatin School of Individualized Study, na Universidade de Nova York, e, em poucas semanas, já tinha conseguido um papel em “The Deuce”, série da HBO. Ele disse que “isso foi como que um sinal cósmico de que tomei a decisão certa”.

Enquanto isso, em outro departamento do império da WarnerMedia, os planos para um filme sobre os Soprano estavam começando a se desenvolver. David Chase, criador e cérebro da série original, disse que a Warner Bros. não lhe impôs quaisquer restrições sobre o tema do filme.

Por isso, ele e seu parceiro na criação do roteiro, Lawrence Konner, decidiram que o foco da trama seria a pré-história da série, no final da década de 1960 e começo da década de 1970 –especialmente o personagem Dickie Moltisanti (o pai do personagem de Michael Imperioli, Christopher Moltisanti), citado na série mas jamais desenvolvido totalmente.

“Eu queria fazer um filme de gângster, mais que qualquer coisa”, disse Chase. “E queria que tivéssemos um membro crível, realista, plausível de La Cosa Nostra. E Dickie Moltisanti estava lá, pronto para o uso”. O prólogo também permitiu que os roteiristas mostrassem Tony Soprano ainda bem jovem, antes de ter decidido seguir carreira no crime.

“Certamente não queríamos retratá-lo como um arruaceiro, ou valentão de colégio”, disse Chase. “Ele de vez em quando aprontava, mesmo aos nove anos de idade. Mas que menino não apronta? Só aqueles que você gostaria de surrar”.

No entanto, quando os realizadores começaram a procurar um ator para o papel de Tony na adolescência, não ficaram satisfeitos com as pessoas que testaram. A data para iniciar a produção estava se aproximando, e Chase e sua mulher, Denise, por acaso se viram almoçando com Gandolfini, com quem eles se encontravam intermitentemente desde a infância do ator.

Chase disse que sua expectativa era a de almoçar com um menino, mas “o que vi do outro lado da mesa foi um homem feito”. E durante o dilema sobre quem escalar para o papel do jovem Tony, Chase disse que se lembrou daquele almoço. “E eu pensei comigo mesmo que aquele era o cara”, ele disse. “Temos de fazer acontecer”.

Gandolfini estava bem menos seguro de que queria o papel. Sabia que o trabalho exigiria que mergulhasse fundo na vida de seu pai, de cuja dolorosa ausência ele seria lembrado constantemente. “Eu já tinha passado tanto tempo em minha vida pensando no meu pai que a última coisa que desejava fazer era pensar sobre meu pai”, disse o ator.

Mesmo assim, Gandolfini concordou em fazer um teste, nem que fosse apenas para impressionar o diretor de elenco do filme, Douglas Aibel, e possivelmente conseguir papéis futuros nos projetos dele. Para se preparar, Gandolfini estudou “Família Soprano” com atenção pela primeira vez.

Antes, só tinha visto trechos do piloto, mas para se preparar ele assistiu a todos os 13 episódios da primeira temporada, sozinho, sabendo que isso mexeria com suas emoções. “Foi difícil para mim assistir sozinho ao trabalho do meu pai, sem ter em quem me apoiar”, ele disse.

Assistindo ao trabalho de seu pai como Tony Soprano, Gandolfini percebeu que sua conexão única com o ator não havia lhe ensinado coisa alguma sobre como ser Tony Soprano. “Eu talvez soubesse como fazer o papel de meu pai”, ele disse. “Mas não sabia coisa alguma sobre interpretar Tony. Tive de criar Tony com base em minha vida, e ainda assim trabalhar com todas as coisas que fazem dele Tony”.

E o multifacetado Tony o fascinou –“um personagem que chora, que fica furioso consigo mesmo por chorar, e depois ri de si mesmo, em uma só cena”, ele comentou. Gandolfini estava determinado a assimilar os traços físicos e os tiques que via no desempenho do pai: o passo pesado e a postura encurvada de Tony, a maneira pela qual ele mordia o lábio ao sorrir, e os punhos cerrados com que ele encarava as sessões de terapia.

Depois de um processo de audições que durou semanas, ele conquistou o papel, e desenvolveu ainda mais apreciação por seu pai. “Ele era tão diferente de Tony”, disse Gandolfini. “O único insight que acho que tive foi o orgulho profundo que sinto dele. Fazer o papel por três meses me deixou completamente exausto. E ele o fez por nove anos”.

Alan Taylor, diretor de “The Many Saints of Newark”, disse ter hesitado um pouco quanto a permitir que Gandolfini fosse testado para o papel. “Eu nunca tinha visto o trabalho dele”, disse Taylor. “Não sabia se ele estava à altura do papel, e não sabia se pedir para ele fazê-lo era a coisa certa, emocionalmente. Porque é um território muito explosivo para que um cara jovem percorra".

Mas Taylor, que dirigiu diversos episódios de “Família Soprano”, disse que a preparação cuidadosa de Gandolfini para a audição o convenceu –com a ajuda de alguns comentários que ele o ouviu fazer para colegas em um jantar antes do início da filmagem.

Segundo Taylor, “ele se levantou e disse que queria agradecer a todos por lhe darem a chance de dizer alô e adeus ao pai dele de novo. E depois disso, nunca mais questionei a escolha”. Nas semanas anteriores à filmagem, Gandolfini se aproximou de Alessandro Nivola, que interpreta Dickie Moltisanti; eles saíam para jantar, falavam sobre a vida e assistiram a “Perseguidor Implacável” [“Dirty Harry”] juntos.

Nivola disse que os exercícios eram necessários porque o filme relata o relacionamento entre Dickie e Tony de uma maneira nada sentimental. “Nós não dizemos um ao outro que nos amamos”, ele disse. “Por isso, aquele sentimento precisava existir sem que o colocássemos em palavras”.

Nivola disse que foi fácil se aproximar de Gandolfini com relação à importância da oportunidade que o filme representava para cada um deles. “Ele por estar no começo da carreira e saber que seria definido, tão cedo, por um papel que originalmente foi de seu pai, e eu porque já é meio tarde em minha carreira para ter uma grande oportunidade”, disse Nivola.

“Ele sempre foi incrivelmente humilde, e me disse –o que me preocupou um pouco– que confiava no meu conhecimento para orientá-lo. O que mais o impressionou em Gandolfini, disse Nivola, “foi sua capacidade de remover completamente a conexão sentimental, pessoal, genética para com o seu pai e o legado do papel, e abordar o trabalho de um jeito forense, como qualquer ator abordaria um trabalho para o qual foi escalado”.

Nivola acrescentou, com uma risadinha, que “é possível dizer que essa compartimentação é a qualidade dos psicopatas, mas também a de pessoas capazes de se sair bem desse tipo de situação”. Jon Bernthal, que interpreta Johnny Boy, disse que ele e Gandolfini conversaram antes da filmagem sobre o peso que sentiam por ter de subir ao patamar definido por James Gandolfini –um peso que recai desproporcionalmente sobre Michael Gandolfini.

“Ele me falou sobre a missão que tinha se dado, de conhecer melhor o seu pai”, disse Bernthal. “Tentar ficar à altura do pai de Mike é uma tarefa impossível para todos nós, mas especialmente para ele. E Mike o fez o tempo todo, com o rigor de seu trabalho e com a dedicação que demonstrou”.

A despeito de os dois serem de gerações diferentes, Bernthal disse que se surpreendeu com a facilidade que teve para formar laços com Gandolfini, como colega e como amigo. “O pai dele era meu ator favorito, e acho que ele está se esforçando imensamente para ser um artista como o pai”, disse Bernthal.

“E eu também. Nós cobramos um ao outro quanto a isso. É notável que eu possa recorrer a esse homem, de metade da minha idade, em busca de conselhos, como ele recorre a mim. Ele é muito mais maduro do que sua idade indicaria, e um ator de grande talento”.

Embora Gandolfini já tenha trabalhado com os diretores Anthony e Joe Russo (em “Cherry – Inocência Perdida”) e com Ari Aster (em “Disappointment Blvd”, ainda inédito), ele está longe de ser um astro, e esse anonimato o agrada, até agora. Mas não importa como “The Many Saints of Newark” venha a ser recebido, ele sabe que, depois de seu lançamento, vai ser impossível passar despercebido.

“Adoro meu anonimato”, ele disse. “Pessoas me reconhecem de vez em quando, e isso certamente me causa ansiedade”. Ele disse que ainda tem algumas salvaguardas: “A barba ajuda”. Para ingressar em um mundo que fica além de Tony Soprano e longe da sombra de seu pai, Gandolfini tem uma filosofia, resumida claramente em uma tatuagem em seu braço esquerdo: a palavra “fé”, sublinhada, por sobre a palavra “medo”.

Ele explicou que “você pode viver com medo a vida inteira, e é o que eu em geral faço”, disse Gandolfini, listando as autocríticas que correm constantemente por seus pensamentos: “Não sou o cara certo para isso. Não me contrate. Essa é uma má ideia”.

Ele prossegue: “Ou, porque é tudo hipotético, você pode viver sua vida com alguma fé de que as coisas vão se resolver: Tudo ficará bem, sou o cara certo para isso, alguém sabe o que está fazendo”. Gandolfini abre um sorriso familiar, e diz: “Se não sou eu que decido, por que não encarar as coisas de um modo positivo?”

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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