Gal Costa: 'Nos despedimos com um te amo', diz cineasta que documentou vida da cantora
Atualmente, Dandara Ferreira faz ficção sobre a intérprete estrelada por Sophie Charlotte
Quando me pediram para escrever este texto, pensei muito em como resumir Gal Costa porque ela é amor, alegria, paixão, potência, beleza, e feminino. Gal é canto e é mistério também. Gal é presença.
Perdemos a maior cantora do Brasil. Perdi o meu amor.
E ainda é difícil assimilar essa informação porque algumas das minhas mais felizes e tristes lembranças da vida foram embaladas pela voz de Gal, que, antes de se tornar uma amiga e a grande protagonista de parte importante da minha vida profissional, já era uma grande inspiração.
Na minha casa, ela fazia parte da trilha sonora desde a minha infância. Quando meu pai [o sociólogo Juca Ferreira, ex-ministro da cultura nos governos Lula e Dilma] se separou da minha mãe [a fotógrafa Holanda Cavalcanti], ele cantarolava muito uma música dela, "Hotel das Estrelas". "Rio e também posso chorar/Oh, e também posso chorar", diz um trecho da música.
Fui crescendo e as suas músicas seguiam fazendo parte da minha vida. Os romances, as festas com os amigos, os momentos de tristeza. Gal estava sempre ali sempre trazendo alguma coisa importante. Por isso, conhecer Gal pessoalmente, para mim, foi também um encantamento, um grande acontecimento.
Nossa aproximação começou quando eu tinha uns 24 anos. Conheci Gal por intermédio de Caetano Veloso, seu parceiro, seu grande amigo, num jantar em São Paulo. Eles estavam comemorando o disco "Recanto". Eu estava maravilhada por estar com ela, embora ela não tenha me dado muita bola. Tentei de toda forma me aproximar: sentei na mesa de frente a ela, pedi o mesmo prato vegetariano, mas nada adiantou. Ela estava mais focada em ouvir Caetano (claro!).
Nossa amizade foi se desenvolvendo com o tempo. E acho que o documentário que dirigi, "O Nome Dela É Gal" (HBO), contribuiu para isso. Criamos ali uma relação de amizade e confiança. O desejo de documentar a história de Gal era antigo. Achava um absurdo não ter nada documentado sobre uma das mais belas vozes da música brasileira. Ela por um tempo se mostrou reticente, e arquivei o projeto. Talvez achasse que ainda não era hora.
Só em 2015, quando completou 50 anos de carreira e 60 anos de idade, numa conversa, ela me disse que toparia que eu fizesse o documentário. Eu quase nem acreditei que estava ouvindo aquilo.
Discutimos o projeto do documentário sempre com muito diálogo e respeito aos seus próprios limites. Gal sempre foi uma personalidade pública, uma mulher à frente do seu tempo, que inspirou muitas outras mulheres, mas Maria das Graças Penna Burgos sempre preservou como pode a sua privacidade.
Em 2017, ano do lançamento do documentário, numa conversa comigo e Wilma [Petrillo, empresária de Gal] em sua casa, ela me instigou a fazer um filme de ficção sobre a vida dela. Brincou que tinha filmes de várias cantoras, citou o filme sobre Edith Piaf, que ela gostava muito e fez uns comentários sobre a atriz.
Eu sabia que o desafio era enorme de fazer esse filme. Deu medo porque além de Gal, teriam que ser retratados todos os meus maiores ídolos: Gil, Caetano e Bethânia. Imaginava o tempo inteiro eles na sala de cinema assistindo e a adrenalina disparava.
Quando desenvolvi o projeto e precisava pensar em quem a interpretasse, me veio na cabeça a Sophie Charlotte e ela topou.
Durante o processo do filme, olhava para Sophie e via Gal, mesmo Sophie são sendo tão parecida fisicamente com Gal. Me emocionei num dia de filmagem que Sophie se espreguiçava numa rede e fazia gestos corporais muito próximos de Gal.
Gal esteve presente na feitura do filme. Ligava sempre para compartilhar coisas, tirar dúvidas, mostrar coisas que tínhamos descoberto na pesquisa, perguntar do figurino. A memória dela era péssima (risos), mas queria viver aquele momento tão importante para mim junto com ela.
Esses quase 10 anos documentando Gal me fizeram admirá-la ainda mais. Estamos falando dessa mulher corajosa, que enfrentou a própria timidez, os preconceitos e até mesmo a Ditadura para bancar a sua arte, a sua música.
Uma mulher que quebrou barreiras e que se tornou uma referência para nós, mulheres de diversas gerações. Uma artista combativa, que até hoje se mantinha atuante na luta pela cultura e por um Brasil melhor.
A última vez que nos vimos, embora tenha sido por FaceTime, eu estava coincidentemente com Caetano num jantar em Brasília. Falamos nós três e fiquei ecoando essa ligação por vários dias. Relembrei que Caetano havia nos apresentado e agradeci a ele por isso. Nos despedimos com um te amo.
Na quarta-feira (9), na hora que eu soube da morte da Gal, eu estava no telefone com Sophie. Não nos falávamos por telefone fazia tempo. A ligação caiu e eu recebi a notícia. Simbólico.
A morte é ausência, mas não existe ausência ao falar de Gal. Gal estará sempre presente entre nós.
Te amo, Galzinha. Obrigada por tanto.
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