'Não existe amor em SP?' Perguntamos ao Criolo sobre a cidade que completa 466 anos
Em seus 466 anos de idade, com aniversário comemorado neste sábado (25), São Paulo já inspirou muitas músicas, inspirando músicas que viraram símbolos, como o "Trem das Onze", de Adoniran Barbosa, "Ronda", de Paulo Vanzolini, e "Sampa", de Caetano Veloso.
Em 2011, um rapper paulistano se consagrou com uma faixa que também fala da cidade. Mas, diferente de muitas homenagens do passado, a São Paulo cantada por Criolo em "Não Existe Amor em SP" é hostil — "um labirinto místico/onde os grafites gritam", em que "os bares estão cheios/de almas tão vazias/a ganância vibra, a vaidade excita" e onde "ninguém vai pro céu".
Sua composição, do álbum "Nó na Orelha", é até hoje uma das mais tocadas de sua discografia nas plataformas de música disponíveis. Também é "desafiada" pelo público, com mais de 150 mil postagens no Instagram com a hashtag afirmando que #ExisteAmoremSP.
A explicação para essa frase contundente motivou a BBC News Brasil a entrevistá-lo sobre a cidade, onde nasceu há 44 anos. Filho de nordestinos, Kleber Cavalcanti Gomes nasceu no bairro de Santo Amaro e passou boa parte da vida morando no Grajaú —também musicado em "Grajauex", em que "Duas laje é triplex", como cantou já sob seu consagrado nome artístico, Criolo.
As raízes artísticas da família estão no bairro —foi lá que a mãe dele, Maria Vilani, também filósofa e professora por décadas, fundou o Centro de Arte e Promoção Social (CAPSArtes). Criolo, aliás, também teve sua passagem nas salas de aula, trabalhando como arte-educador por pouco mais de uma década.
"Acho que tem uns 12 anos que eu fiz essa música ("Não existe amor em SP"), então eram três décadas e alguma coisa (vendo) como é a cidade tratar uma pessoa e sua família, a cor da pele da sua família; a história e cultura de sua família, que vem de outros Estados", contou à BBC News Brasil.
A entrevista aconteceu em uma manhã de segunda-feira no escritório da assessoria de Criolo, em uma casa no bairro do Jardins, área nobre perto da Avenida Paulista. Nos bastidores, enquanto a equipe preparava os equipamentos de filmagem, o músico falou de Star Wars e até de aquisições recentes de equipamento bélico pelo governo brasileiro.
Já na entrevista, Criolo respondeu a perguntas sobre São Paulo, mas também falou de seus posicionamentos políticos, drogas, sua esperança na juventude e na arte produzida nas periferias, além de sua identificação racial e ancestralidade.
Confira os principais trechos da entrevista.
A gente está aqui por conta da sua faixa Não Existe Amor em SP, que você lançou para o mundo há mais ou menos uma década. E desde então esse é um verso que ganhou vida e está em legendas no Instagram falando que existe sim amor em SP, e enfim, trata-se de uma nova interpretação importante sobre a cidade. Primeiro, eu queria te perguntar: quem falou isso, o Kleber, o Criolo ou um outro "eu-lírico"?Não teve muito lirismo, na verdade. Tiveram outros componentes ali. Mas eu mesmo, eu sou tudo isso aí. Em construção e capenga, mas um tanto que cai, me levanta. A sensação da cidade é uma cidade de não pertencimento, que te leva a chegar a algumas conclusões e à visita das verdades, né?
Mesmo tendo nascido aqui, você se sente deslocado?
Então, a cidade, ela que se desloca. A cidade tem um jeito de respirar e de escolher os seus componentes. Então não é que eu me sinta deslocado, é o não pertencimento realmente.
E que elementos são esses, que alteram e podem provocar essa sensação de não pertencimento?
O modo como a cidade é gerida e como um grupo de pessoas consegue desenvolver um tipo de pensamento que define que tipo de cidadão merece receber qual tipo de serviço, que é o básico do básico de obrigação do Estado.
O modo como a cidade trata cada pessoa é o que vai dar valia ou não a essa frase. Agora, o modo como as pessoas tentam todos os dias construir uma cidade diferente é o que leva a essa sensação: "não, existe amor, sim". Porque ela parte do coração dela, das ações dela, daquilo que ela acredita que ela pulsa para a cidade.
Especificamente em relação a essa faixa, qual foi a história por trás da música?
Eu acho que tem uns 12 anos que eu fiz essa música... Então eu tinha 30 e alguma coisa. São três décadas e alguma coisa de como é a cidade tratar uma pessoa e sua família, e a cor da pele da sua família, e a história de vida e a cultura de sua família que vem de outros Estados. Tudo isso se mistura e se condensa e você percebe como a cidade trata esse tipo de cidadão.
Em relação a essa música, eu vi em outra entrevista —teve alguma história que você estava passando por Pinheiros, viu alguma construção... Teve algum estopim, né?
Não, o estopim é a vida toda vendo a desgraça. Quando você sair daqui... Quer andar pela cidade, vamos andar. Quer andar na cidade? Vamos contar quantas pessoas estão comendo do lixo agora. Quantas pessoas estão falando: 'não sei se vou morrer porque vai chover? Vai chover e a gente mora na rua, se chover de madrugada, já era'.
Todos os dias quando se nasce, esse que nasce inocente do zero, o que o Estado oferece para essa criança? Já que nós já estamos completamente perdidos e não existe diálogo de maneira alguma e nunca houve. O que tem é um grupo de pessoas, sobretudo jovens, nos quatro cantos do Brasil que tentam de alguma maneira criar processos de construção de diálogo.
Mas se ele tá nesse desespero, em uma linha de frente e sabendo que ele pode até ir para um confronto físico para lutar por uma tentativa de construção de diálogo, significa que não existe esse diálogo.
Você está falando sobre viver, respirar a cidade. Atualmente, em qual região ou bairro da cidade você mora?
Não é uma questão disso. O seu coração não muda. As marcas que vão pra sua alma elas estão para sempre.
'Freguês da meia-noite' é uma outra faixa que fala de outra parte da cidade, histórica, o Largo do Arouche (a música conta cenas de um homem no tradicional ponto gay da capital paulista 'num frio que é um açoite' e onde uma 'confeiteira' oferece seus doces).
Largo do Arouche, de extrema importância para a cidade de São Paulo. Um grande pólo de encontro de pessoas que estão sorrindo, de pessoas que expressam todo o seu amor à cidade. Pessoas que não têm vergonha de expressar como querem o mundo.
Gravei essa música porque eu ia pedir para um amigo para dormir na casa dele, (porque) não tinha como voltar. Ele trabalhava num restaurante, no Casserole (tradicional restaurante francês), e eu fiquei com vergonha de entrar. Não tinha dinheiro para consumir... Aquele pensamento nosso: 'será que se eu entrar, vai queimar meu mano no trampo dele? Será que a chefia vai reclamar? Não tô no traje, né...'
Isso também é a cidade. Eu esperei do lado de fora, e quando esperei do lado de fora, abri os olhos e vi aquele universo todo. E nasceu a canção.
O centro da cidade fez parte, faz parte da sua história com São Paulo?
Faz parte... Por causa da 24 de maio, Galeria 24 de Maio. Tem uma importância cultural pra nossa música e pra juventude há décadas.
É a Galeria do Rock?
Galeria do Rock, e pra nós a gente chama Galeria do Rap.
Qual veio antes?
A do rock.
E hoje ela é mais do rap?
}Hoje eu já não sei mais te dizer. Mas de duas décadas ali frequentando, pra mim foi de extrema importância. É um lugar de encontro. É um lugar de encontro de sonhos, também. Encontro de realidade, de pessoas que vivem algo parecido com o que você vive, mas cada lugar tem seu jeito, sua peculiaridade, é um lugar de construção, de ensinamento.
Eu sempre enxerguei a Galeria 24 de Maio como um ponto de parada para respirar e tentar... Sei lá, não dá para te explicar. A gente está na rua vivendo um sonho.
Em 2017, por exemplo, você foi questionado sobre sua participação no Lollapalooza, que tem ingressos muito caros. Como você encara esse tipo de questionamento?
As pessoas são livres para se expressar.
Mas você se preocupa, em sua agenda, a torná-la mais acessível, democrática, ou seja, até em termos de locais onde você toca no Brasil e no exterior?
Acho que ali havia outras nuances em jogo, para se falar daquilo.
Quais nuances..?
Do que eu já cantei na vida, ou do que canto na vida, ou do que faço, e eu não divulgo, ou das apresentações e contribuições. O que é mais interessante se falar? É isso.
Se o Estado deveria entrar, falando especificamente de arte, onde ele deveria entrar?
Quando a gente fala que cada favela é um campo de concentração, isso não deveria acontecer. Por que o Estado tem que oferecer tanto sofrimento às pessoas?
É anterior à arte?
É. Porque ela vai fluir da alma do brasileiro. É natural. E ela vem também como expressão da sua alma e como algo de extremamente especial e íntimo, que a pessoa tem uma coragem absurda de dividir com o mundo de como ela tá se sentindo. Então, ela cresce em um lugar que parece um campo de concentração, uma coisa de guerra assim de 10 anos, 30, 50, 100 anos, 1000 anos.
Uma criança nasce em um ambiente que parece ter uma guerra de 1000 anos, e ela ainda consegue te oferecer algo de maravilhoso, que é alma desse jovem que está pulsando, tá gritando. Imagina se tivesse um mínimo de dignidade e suporte para se desenvolver.
A gente está falando de paradas de sucesso, então a gente está pensando em popularidade. Pensando em nicho e popularidade, você acha que onde o samba e o rap estão nesse espectro (apesar de ter ficado conhecido como rapper, Criolo tem gravado e apresentado sambas, como no seu álbum 'Espiral de Ilusão')?
Eu acredito que o samba é a nossa coisa de energia maior musical, é uma coisa que não se explica. Em todo lugar do mundo, o samba quando é tocado as pessoas se emocionam, ficam curiosas, elas querem saber.
É a alma. Está na alma do brasileiro porque é uma construção de diáspora. Uma expressão não apenas musical, mas cultural e de estilo de vida que vem de uma beleza de ancestralidade que não se explica. E que cada vez mais é retirada dos livros da escola —já se falava muito pouco, e agora acho que está acontecendo um movimento de se tirar realmente. Se a alma tem DNA, tá no DNA da alma do brasileiro essa música ancestral.
Tem medidas concretas recentes que você vê que podem estar levando a essa diminuição dessa história dos livros?
Bom... Nós temos pessoas que vêm em canais públicos, abertos, falar que não existe racismo no Brasil.
Você falou da sua ancestralidade... O seu nome artístico é Criolo, você acabou de interpretar um escravo (o personagem Couraça no filme 'O juízo', lançado em 2019) . Como você se identifica racialmente?
Um escravizado... Escravo não existe né, ninguém nasce escravo. Eu sou filho de seu Cleon, um homem negro, sou neto do seu Roseno, que foi estivador do cais do porto de Fortaleza, meu pai metalúrgico... E aí você vai seguindo.
E eu tenho uma mãe, chamada Maria Vilani, tem uma pele clarinha, clarinha, clarinha. E sou neto de um senhor chamado Cícero que estava tentando ensinar para ela as letrinhas até os 4, 5 anos de idade. E ele trabalhava com couro, tinha como se fosse uma quintandinha, trabalhava um pouco com couro, e minha mãe se tornou a benzedeira do bairro por 15 anos.
O que eu sei é que, e sou muito grato à família tanto da parte do meu pai e da minha mãe, esse marco zero do sofrimento não vem a partir do meu pai e da minha mãe. Vem de bem antes. Então sou fruto de uma miscinegação. E o orgulho dessa pele preta.
Nas últimas eleições presidenciais, você postou uma foto do Fernando Haddad com a legenda "Pela democracia, contra o fascismo". Hoje, já com o oponente tendo ganho, o governo do Jair Bolsonaro há mais de um ano, você acha que a democracia está em risco?
Sempre esteve e agora mais.
E você acha que a maior parte da população escolheu esse projeto que deixa mais frágil a democracia?
Acho que não. Uma grande parte foi movida por outros sentimentos.
Por exemplo quais?
Desses que a gente pode moldar e a gente nem sabe muito bem o que a gente está sentindo.
O Mano Brown, que é outra referência no rap nacional, teve um dos discursos mais contundentes naquela época de cima de um palanque do PT. E ele falou, fez uma crítica, a o quanto os partidos ditos dos trabalhadores ou do povo — então é claro que aí ele estava falando do PT — podem se afastar das bases ou podem estar deixando de entender o povo. Você acha que os governos do PT deixaram de entender o povo?
Eu acho que o Mano Brown tá muito certo no que ele está falando.
A eleição do Jair Bolsonaro será que representa um melhor entendimento do povo, pelo menos naquele momento da eleição?
Volta na resposta da última pergunta.
Do Mano Brown?
Não... De todos aqueles sentimentos que se possam moldar. Não necessariamente partindo desse eu, do seu eu... Mas de uma congruência de coisas que te levam a navegar de uma forma nesse mar que é construir opinião.
Como eleitor e como figura pública, como você vê as acusações e condenações por corrupção do ex-presidente Lula (o petista foi condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro em primeira e segunda instância, acompanhando agora seu processo judicial em liberdade)?
Voltamos mais uma vez a uma outra construção de um outro lance.
Mas a gente está falando por exemplo, precisamente do Judiciário...
Eles estão fazendo a parte deles, não tem o que fazer. Agora, quando o Mano Brown fala de afastamento, ele fala de muitas outras coisas junto com isso. Do que faz e o que não faz acontecer nessa guerra. Aí tem muito mar para nadar...
Se você puder apontar para a gente o que você está vendo nesse mar, seria interessante saber a sua opinião.
Eu vejo que existe um interesse muito maior do que eu possa até imaginar da importância do que é você destruir um símbolo.
E esse símbolo...
Um símbolo que representa, ou representava, ou que traz ainda uma ideia de possibilidade de construção. Ninguém quer ver a classe mais frágil da sociedade sorrir. E aí é onde se condensa essa construção de ódio absurda. Porque não tá muito ligado ao que o Judiciário vai definir para um lado ou para o outro. Mas uma coisa que se constrói de quem tem que continuar sendo a ponta da escravidão e quem tem que continuar sendo o senhorzinho da casa branca.
Pelas suas músicas, dá para entender que você tem uma visão muito particular sobre as drogas. Consigo pensar em algumas músicas em que você indica o quanto ela está ligada a uma elite...
Alguém lucra... Alguém lucra com isso. Alguém está ganhando muita grana.
Em relação aos debates sobre política de drogas...
Então, sabe o que acontece? Tem que ser pra ontem esse debate. Olha que coisa louca: é tabu só citar o tema, se pode ter debate. Olha que lugar obscuro, olha como está obsoleto, como tá atrasado. Sabe?
Por que a própria população talvez não consiga ver ou comprar esses debates?
A gente não pode colocar a culpa na população que não pode ver ou comprar esse debate. Muito fácil culpar a população... Existe um processo de desvalorização da escola pública e desvalorização de cada componente que trabalha com educação, arte e cultura, que começa por diminuição de salário, ridicularização de posição social, porque é assim que se conversa aqui.
Me dói sempre colocar a culpa na população. É como se existissem seres intelectuais, inteligentes, e os seres não intelectuais não inteligentes. Esse que se acha intelectual e acha que a população não tem processo intelectual para mim é o que mais tem dificuldade de processo cognitivo — profundo.
Porque se você não tem uma abertura real de valorização da educação do país, não dá para você dialogar sobre nada. Todos os pontos que você levantou aqui, não dá para dialogar sobre nada. Vai virar um meme. E alguém vai usar em alguma eleição, é isso.
Se o cara tem uma opinião diferente da outra, pega o recorte de uma coisa e acabou, ninguém vai falar mais. O fortalecimento da ideia esdrúxula de que droga está ligada... O artista é loucão, estas coisas cristalizadas desde antes de ditadura...
Existe uma urgência de falar sobre drogas, mas existe um abismo muito grande não só para esse tema, mas para um série de outros temas. Criou-se uma ideia de que é chato falar sobre religião, política e... Enfim, aí coloca no pacote futebol. Aí: é chato falar sobre política.
E as pessoas falam como se... "é mesmo". E reproduz. E sabe por que reproduz? Porque é chato não fazer parte também, sacou? Porque a pessoa trabalha 12 horas por dia, sacou? Ela não tem tempo, moleque. E tem pessoas que recebem muito bem para ter esse tempo e pensar uma organização de como a gente pode construir uma nação que já é rica, porque nossos jovens já são ricos de saberes.
Em relação à educação formal, você estudou até qual etapa?
Fiz o segundo grau, tentei algumas faculdades mas não me formei.
Por que não foi à frente na faculdade?
Ah... Dificuldade cognitiva, e às vezes falta de grana, dificuldade intelectual de compreensão... E falta de grana. Dificuldade de entender o que tá acontecendo e de tentar ver se era aquilo ou se não era... E depois mais um pouco de dificuldade de compreensão, e depois falta de grana. Em cada uma dessas frases da minha dificuldade de não compreensão, vai ter a falta de grana.
Você tem vontade de voltar a esse campo da educação formal?
Sinto saudade de estudar...
Como você era como aluno?
Sempre muito mediano... Dentro do que a norma... Como você falou?
A educação formal?
É... Dentro da formalidade, nunca consegui atender ao que a formalidade exigia.
Mas ir para a escola tinha um lado prazeroso para você, além do opressivo?
Claro... A gente não sabe que está sendo oprimido. Você tem sete anos de idade e você não sabe... Mas você tem algum sentimento, alguma sensação: Por que eu tô aqui? Por que tem grades aqui? Por que as escolas parecem outra coisa? Por que tá todo mundo triste? Por que a gente só sorri quando está correndo numa grama, um gramado? O jardim da escola às vezes é só dois metros. Às vezes é dois por dois, e pra você é um país ali.
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