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Venezuelanos que fugiram da crise fazem sucesso no YouTube retratando tipo de vida que levam no Brasil

Zuleika mora em Pernambuco e sonha em cursar jornalismo - BBC News/Zule Venbra

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Vitor Tavares
São Paulo

Quando a venezuelana Victoria Marquez cruzou a fronteira para o Brasil há três anos, ela carregava os documentos, duas malas, o equivalente a R$ 70 em bolívares e um celular. Com os papéis, conseguiu entrar em Roraima. Com o dinheiro, pagou por comida e chegou a Boa Vista, capital do Estado. E, com o celular, começou a gravar vídeos.

Como é a entrada de tomada no Brasil? Quanto custa o gás? Como funciona o SUS? E o CPF, como tirar? Eram essas dúvidas, frequentes entre amigos e familiares, que Victoria, hoje com 27 anos, respondia nas gravações.

"Eu percebi que tinha muita desinformação, porque falavam muito só da violência no Brasil. Muita gente acredita que aqui só se entra com passaporte, que não pode entrar criança. Foi aí que quis compartilhar o meu conhecimento", explica sobre o canal que resolveu criar no YouTube — o Vicky Marquez — para os conterrâneos que, assim como ela, queriam fugir da crise no país.

Como muitos venezuelanos que chegam ao Brasil, Victoria não tinha muita noção sobre o valor da moeda — descobriu que o que tinha mal dava para um dia — e as dificuldades de achar emprego. Ela trouxe o filho, então com 5 anos e desnutrido, e chegou a viver na rodoviária de Boa Vista. Pesando 45 quilos, trocou trabalho por prato de comida.

Desde o início do êxodo venezuelano, que já tirou cerca de 4 milhões de pessoas do país de acordo com dados mais recentes da Agência da ONU para os Refugiados (Acnur), as redes sociais passaram a ser uma ferramenta aliada na troca de informações entre aqueles que migraram e os que queriam seguir o mesmo caminho.

Para mostrar a vida no Brasil, jovens em várias regiões fazem vídeos e trocam experiências, desde coisas básicas como os preços em um supermercado ao retrato de desolação das pessoas que moram nas ruas de Manaus. Uma busca no YouTube mostra também o uso da mesma ferramenta de informação entre brasileiros que migraram para países como Estados Unidos e Japão.

Até o fim de 2019, estima-se que o Brasil terá acolhido cerca de 175 mil venezuelanos, menos que países como Colômbia (que já recebeu 1,3 milhão, segundo um levantamento de junho da Acnur), Peru (768 mil) e Chile (288 mil).

"COMO É VIVER NO BRASIL?"

Ex-moradora da paradisíaca Ilha de Margarita, símbolo do turismo venezuelano, e ex-estudante de publicidade, Victoria precisou deixar o emprego como operadora de telemarketing por que "não havia mais turistas nem comida" por lá. Gasolina e remédios para o seu problema de psoríase também começaram a faltar, segundo ela contou à BBC News Brasil: "Meu filho dizia que queria comer algo, e eu não podia dar mais. A gente precisava sair de lá".

Já em Boa Vista, após acampar na rodoviária e pedir comida a motoristas, conheceu uma brasileira que ofereceu abrigo em um escritório em troca da arrumação. Depois, conseguiu trabalhos como babá e faxineira, até se mudar para Curitiba, onde trabalha atualmente como repositora de supermercado.

Nos três anos de Brasil, Victoria trouxe pai, mãe e irmão, que estão espalhados em outras cidades no interior do país. Além da família, a venezuelana conta que também inspirou outros conterrâneos a virem para cá: "Recebo muitas mensagens de pessoas me agradecendo, dizendo que vão me encontrar se uma dia forem ao Paraná".

Entre os vídeos que produz, sob a alcunha de Vicky, já mostrou os preços de eletrodomésticos, desabafou sobre a situação em Roraima e até foi in loco mostrar como estava a fronteira entre os dois países. Como plano para o futuro, Victoria gostaria de retomar os estudos e investir em sua carreira de comunicadora. "Quero investigar as coisas e oferecer informações de qualidade para quem quer conhecer o Brasil. Eu quero ser parte da solução, não dos problemas".

YOUTUBER

Com a mesma intenção, Leonardo García, 27 anos, passou a fazer vídeos ainda na Venezuela, em 2016. No ônibus, mostrou como fez para sair da cidade de Valencia, a terceira maior do país, trocar de transporte em Ciudad Guayana e chegar até Santa Elena de Uairén, na divisa com Pacaraima.

O vídeo, com poucas edições e imagens de baixa qualidade, muitas vezes gravadas escondidas, tinha mais de 45 mil visualizações no início de novembro.

Com o sonho de se tornar um YouTuber de viagens, García passou a fazer vídeos práticos sobre a vida no Brasil no canal LeoVlogs. "O meu foco era ajudar pessoas com as coisas que eu sabia. Havia muita informação sobre Colômbia e Peru, mas nada sobre o Brasil", conta.

Formado em engenharia de telecomunicações, García trabalhou em uma emissora de rádio até 2016, época em que morava com os pais, em uma situação "relativamente tranquila", quando percebeu que o seu salário passou a não ser suficiente para comprar um par de sapatos. Aí, tomou a decisão de emigrar.

García diz que "previu" que a situação ficaria insustentável. Vendeu moto, guitarra, relógios e levantou US$ 1.000, "muito mais do que a grande maioria consegue", diz. Chegou ao Brasil por Pacaraima e, de ônibus, seguiu até Boa Vista e, depois, Manaus.

Na capital do Amazonas, conseguiu abrigo com outra venezuelana e, quando o dinheiro estava prestes a acabar, conseguiu um bico para vender comidas numa parada de ônibus. Foi segurança de uma padaria, trabalhou numa empresa terceirizada na Receita Federal, foi editor de vídeo, até começar a tocar guitarra na noite da cidade, com a banda Caribe Bongo.

A experiência de García foi parar no YouTube: mesclou vídeos ensinando a tirar a carteira de trabalho e sobre a recepção de brasileiros a venezuelanos; e gravou outros mostrando os pontos turísticos de Manaus e viagens a outras regiões do Brasil.

No último dia 30 de setembro, ele estava numa praia perto da capital amazonense e reconheceu um homem que havia pedido dicas a ele antes de sair da Venezuela. "Fiquei muito feliz em vê-lo. Ele também tirou foto comigo e tudo para mandar ao irmão dele", conta García, relatando que muitas pessoas escrevem mensagens pedindo orientação.

BRASILEIROS CURIOSOS

No auge da crise na fronteira no Brasil, em agosto de 2018, quando venezuelanos e brasileiros entraram em confronto nas ruas da Pacaraima, em Roraima, Victoria deixou de fazer vídeos.

Muitos comentários de ódio e críticos aos seus vídeos começaram a aparecer. "Diziam que eu era a culpada por ter tanto venezuelano em Boa Vista. E não, a culpa na verdade é da crise que meu povo sofre", relata.

Quando as coisas se normalizaram e os vídeos foram sendo postados novamente, os brasileiros passaram a ser parte importante da audiência do "Vicky Marquez" e dos outros YouTubers entrevistados pela BBC News Brasil. O conteúdo ficou cada vez mais em português.

Moradora de Pernambuco, a engenheira de instrumentação Zuleika Nayibeth, de 28 anos, diz que recentemente os brasileiros se tornaram maioria entre os seguidores do canal dela, o Zule VenBra. De vídeos ensinando a tirar o visto no Brasil ou como enviar dinheiro à Venezuela, passou a ensinar gírias do país e palavras em espanhol.

"Os brasileiros são muito curiosos sobre o que a gente acha da vida aqui, o que achamos dos costumes. Passei até a falar português para me aproximar deles", conta.

Diferentemente dos conterrâneos, Zuleika veio ao país antes dos piores momentos da crise, em 2015. Se apaixonou por um pernambucano na internet e foi morar com ele na cidade de Sirinhaém, a cerca de 60 quilômetros do Recife. De lá, não saiu mais e nem voltou para visitar o país natal: "acho que ia ficar em choque e cair em depressão".

Hoje, a engenheira trabalha numa loja de cosméticos e quase não tem tempo para produzir os vídeos: Também não conseguiu validar sua formação no Brasil nem iniciar a sonhada faculdade de jornalismo: "Não posso perder tempo com isso agora, todos dependem de mim". Uma irmã dela chegou a Pernambuco em 2018, e os pais ainda estão na Venezuela.

Em um passeio de férias, Zuleika foi a Natal, no Rio Grande do Norte, e encontrou uma conterrânea, advogada formada, trabalhando como vendedora de pacotes turísticos. Disse que não conteve as lágrimas. "É muito triste ver tanta gente qualificada nessa situação. Tem muita gente trabalhadora, honesta, sem nenhuma aportunidade", relatou.

Em comum, os três "youtubers" dizem que pretendem voltar à Venezuela se a crise passar, mas que admiram o Brasil e que pretendem construir uma vida aqui. "Já conheci muitos brasileiros querendo sair do país e empreender em outros lugares para tentar uma vida melhor. Para muitos venezuelanos, o Brasil é esse país", concluiu Zuleika.