Mulheres descobrem na dança burlesca o poder da autoconfiança e da liberdade de expressão
'Vi que o burlesco tinha a ver com amor-próprio', diz praticante
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Mulheres de todas as idades e tipos físicos estão redescobrindo o gênero de dança burlesco como uma ferramenta de empoderamento e de valorização da autoestima. Plumas, luvas e movimentos leves e sensuais são usados como complemento nesse tipo de dança glamorosa, que, às vezes, é feita com muita (ou quase nenhuma) roupa.
Originalmente, o burlesco remonta ao século 16 e surgiu na Europa como paródias de obras tradicionais, burlas (espécie de sátiras) da literatura e do teatro. "A essência é burlar o padrão, uma cultura. Esse é o cerne da coisa”, afirma a mestre de artes cênicas, Giorgia Conceição, 37, a Miss G., que também faz performance burlesca e organiza o festival "Yes, Nós Temos Burlesco", no Rio.
Conceição afirma que a questão de se despir na dança pode ter ligação com a proibição da mulher de fazer parte de grupos teatrais, principalmente na Grécia e no Egito. "Proibida de subir ao palco, a mulher introduziu o conceito burlesco para dar o seu recado político na marginalidade, em festas e, depois, em cabarés. Tirar a roupa, mesmo sendo fora do padrão de beleza, já era um ato político."
Do movimento europeu, a inglesa Lydia Thompson (1838-1908) levou o burlesco para os Estados Unidos em meados do século 19, e o gênero foi se espalhando pela América. Com o tempo, os movimentos de danças afro e latino foram incorporados, dando mais movimento aos quadris.
No Brasil, alguns estudiosos consideram que o teatro de revista, surgido no Rio de Janeiro na metade do século 19, seja um dos pilares desse tipo de dança, porque as bailarinas (conhecidas como vedetes) usavam roupas glamorosas e abordavam de forma cômica o cotidiano. "Como elas eram chefiadas por homem, não faz muito sentido com o burlesco", defende Conceição.
Alberto de Oliveira e Alberto Camarero, autores do livro "Cravo na Carne: O Faquirismo Feminino no Brasil", são dois escritores que buscam reunir a história do burlesco e os novos movimentos no Brasil, como explica Conceição: "Hoje há mais festivais do que casas dedicadas ao burlesco".
A primeira instituição de São Paulo dedicada ao gênero é a Escola Burlesca de São Paulo, criada em 2010, na Vila Mariana (zona sul), por Shaide Halim, a Lady Burly, 43. Ela conta que dava aulas de balé desde a adolescência, mas foi adulta que se deparou com o burlesco, depois de experimentar estilos de danças da década de 1920, como vintage e charleston.
O despertar para o burlesco aconteceu quando foi convidada por um amigo para se apresentar na antiga Erotika Fair. "Transformei o vintage em burlesco e deu certo. Começaram a me chamar para outros trabalhos e tive que estudar mais sobre o assunto”, conta Halim.
Parte das alunas de Halim, da Escola Burlesca, se empolgou tanto com as aulas, que a professora formou a Cia. Sobre Saltos, que realiza seu primeiro show no dia 2 de junho, às 17h, no The Clock Bar, em Perdizes (zona oeste). Entre as jovens de 20 e poucos anos, há alunas mais maduras como a fonoaudióloga Jussara Falcão, 50, a Ruby Love nos palcos.
"Fui atrás da dança indiana há seis anos, mas acabei me deparando com a dança burlesca, quando recebi um convite de um amigo para uma apresentação no aniversário dele. Em três meses, a professora me ensinou a coreografia e eu 'tirei a roupa' para 200 pessoas."
Ela gostou tanto que aderiu às aulas e, logo, ela e uma amiga de 60 anos formaram uma dupla: As Devassas. "Nossos shows são cômicos. Todo mundo morre de rir com a gente. Quando estou sozinha no palco, faço algo mais delicado, não pretendo abrir espacate ou fazer acrobacia na cadeira."
A estreia da Cia Sobre Saltos, por exemplo, terá vários quadros, como as enfermeiras sexies e roqueiras. Juliana Santiago, a Sally Hurricane, 29, fará papel de Beetlejuice (Michael Keaton), personagem do filme “Os Fantasmas se Divertem” (1988), na cena clássica da mesa de jantar em que os personagens são incorporados ao som de "Banana Boat Song".
O cômico também é parte da criação do burlesco. Elsie Diamond, 34, que prefere ser chamada pelo seu nome burlesco, faz apresentações glamorosas e também atos de comédia. Em um deles, ela se veste de Liam Gallagher, do Oasis. "Muitas pessoas usam o burlesco como manifestação política ou de empoderamento pessoal, mas, para mim, é só uma forma de entreter as pessoas e de criar um ambiente divertido e inclusivo."
O burlesco é democrático, defendem todas as praticantes. Uma prova disso é Jelly Maciel, a Jelly Bunny, 33, que procurou aulas de burlesco para emagrecer porque não gostava de academia, mas com a dança descobriu que seria mais saudável aceitar o seu próprio corpo.
"Vi que o burlesco tinha a ver com amor-próprio e não adiantava as meninas comprarem um vestido e não se sentirem bem nele", conta Jelly, que é dona de uma confecção de roupas sob medida, e fundadora da Academia de Divas, em Pinheiros (zona oeste), há três anos. "Comecei a criar conversas, workshops e chás da tarde com as clientes para falar sobre isso até que se transformou em uma escola".
Um das características marcantes do burlesco é a criação de um alter ego. "Dou aulas teóricas, práticas e oficinas e trabalhamos a criação do personagem. É feito um exercício para imaginar quem é essa outra mulher que ela vai representar", diz Maciel.
Para Juliana Santiago, a sua Sally Hurricane faz parte de quem ela é. "Por incrível que pareça, sou bem antissocial. Eu a construí para mostrar meu outro eu às pessoas. É por isso que o burlesco é um universo que te agrega e te acolhe."
"A gente dança tirando a roupa, mas não é só isso. Tem todo um conceito e uma história construída. Tem gente que não publica fotos das aulas porque o chefe pode associar a dança à prostituição, que uma outra profissão, um outro caminho", completa Santiago.
O mesmo aconteceu com a Elsie Diamond, que fez apresentações no Cabaré da Cecília, região central de São Paulo, enquanto morava na cidade. "Sou tímida com coisas do dia a dia, mas nunca no palco, quando interpreto a minha personagem, que é uma versão exagerada de mim. Fico mais confortável cantando nua em frente a centenas de pessoas do que conversando com alguém na fila do banco", brinca Elsie.
Muitas das mulheres ouvidas pela reportagem relataram serem vítimas de preconceito por fazer esse tipo de dança. Elas afirmam que esse conservadorismo ocorre até mesmo dentro da própria família. "Gosto de postar as fotos nas redes sociais, mas minha mãe e irmã dizem que eu me exponho demais, e que pode ser perigoso. Contudo, a autoestima que a dança me trouxe fez com que eu mudasse a relação que tinha com o meu corpo e isso não tem preço. É incrível você se olhar e se achar maravilhosa", diz Ana Nuspl, 25, que adotou o nome Annya.
Como Ana Nusp, Lara Rodrigues, 23, a Melyse Raven, também sonhava com o burlesco desde a adolescência. Ela afirma que um dos incentivos foi o filme “Burlesque” (2010), com as cantoras Christina Aguilera e Cher. "Nem é tão burlesco o filme, mas tem a estética. Isso me ajudou a me interessar pela dança."
Já Mirela Perez, 24, a Voodoo Rabbit, diz ter conhecido a dança burlesco durante seu mestrado. Estudiosa e dançarina, ela é a primeira a dizer que não se trata de sensualizar para os homens ou para o namorado. "Não tem nada a ver. Somos o centro da atenção quando dançamos, porque controlamos a situação. A dança burlesca nos dá o poder e o controle e não o contrário, em que o homem domina."
Tanto a Escola Burlesca como a Academia de Divas oferecem aulas especiais e workshops para quem quer começar a se soltar aos poucos. "Todas dizem que não vão tirar a roupa e logo já está rodando o peitinho”, conta ela, sobre os movimentos com os seios feitos com o acessório com franjas nos mamilos”, brinca Jelly.