Avó não foi feita para cuidar de neto: aposentada deixou a família e a casa no Brasil para dar volta ao mundo
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Perto de encerrar sua temporada no Vietnã, a aposentada Josefa Feitosa destaca uma preocupação sobre os rumos de sua viagem. Não é sobre o trânsito caótico da cidade de Ho Chi Minh, as comidas apimentadas ou a dificuldade de entender a língua local. "É que as páginas do meu passaporte estão acabando", explica a cearense de 59 anos, que deixou a vida no Brasil há dois, para dar uma volta ao mundo acompanhada só de uma mala.
A vida pós-aposentadoria de Jô, como é conhecida, é bem diferente daquela que ela levava até 2016, quando trabalhava como assistente social no sistema prisional do Ceará e vivia uma rotina de ameaças, por causa de sua atuação na defesa de mulheres transexuais.
Divorciada após um relacionamento conturbado, mãe de três filhos e avó de um neto, resolveu se desfazer de casa, móveis e roupas. Tudo o que tem agora cabe dentro de uma bagagem.
"Minha cabeça era um entulho biográfico dos outros", relembra sobre seu trabalho de ouvir relatos e dar suporte a detentos, familiares e funcionários dos presídios. "Eu brinco e digo que resolvi me autocondenar à liberdade e escrever minha própria história".
Em 2016, assim que se aposentou, a cearense comunicou à família que planejava deixar Fortaleza para se dedicar ao seu sonho. O resultado da aventura são quase 40 países visitados, divididos entre duas temporadas, uma na Europa e outra entre África e Ásia.
No roteiro, experiências em Auroville, a cidade onde se vive sem dinheiro na Índia, na noite de Amsterdã, nas praias de Zanzibar e no leito do rio Nilo, no Egito. Tudo devidamente registrado em uma página no Facebook, Jô: minha casa é onde minha mala está, que mantém para deixar amigos e filhos informados.
O primeiro passo para o que chama de "liberdade" foi ainda no Brasil. Viajou até Belém, no Pará, para seguir de barco até Manaus, no Amazonas, numa viagem de dez dias dormindo em redes. Depois, seguiu para o Paraná e São Paulo, antes de embarcar para a primeira experiência no exterior com um novo olhar de viajante. Antes, já havia ido à Europa em pacotes turísticos fechados em agências. "Era um horror, achava que o mundo era um bicho-papão".
Após convites para apresentar o seu trabalho como assistente social, seguiu para Portugal e Espanha em março de 2017, numa temporada de palestras e rodas de conversa. Na Irlanda, fez um curso de inglês, principalmente para se manter regularizada na Europa. Atuou de babá, ao mesmo tempo em que estudava e viajava para outros países, como Holanda, Escócia, Suíça, Bélgica e Itália.
Esgotada a temporada na Europa, só deu tempo de voltar ao Brasil para colocar o apartamento para alugar, se desfazer do que sobrou e partir em direção à África do Sul, em março de 2018. Desde então, não voltou mais.
Jô passou por países como Quênia, Ruanda, Uganda, Egito, Israel, Índia, Nepal, Laos até chegar ao Vietnã. Até abril de 2019, quando pretende voltar ao Brasil para renovar o passaporte, declarar o Imposto de Renda e arranjar novos inquilinos para a sua casa, pretende passar ainda por Malásia, Filipinas e Nova Zelândia, países onde não são necessários vistos e que caberiam nas páginas do seu agora experiente passaporte.
A VIDA DE AVÓ VIAJANTE
"Depois de criar três filhos, dar o sangue, suor e lágrimas por trabalhos estressantes e mal remunerados, relacionamento sem respeito, reciprocidade e o escambau, resolvi me dar prazer e alegria": foi assim que Jô se apresentou no perfil do Facebook da BBC News Brasil ao comentar em uma reportagem sobre mochileiras aos 60 anos. Ela também queria ser inspiração.
No diário de viagem da rede social, as mensagens de pessoas que cruzaram o caminho de Jô se misturam com as dos que ficaram no Brasil: " imenso prazer de te conhecer", "espero que um dia nos reencontremos", "quero ser você quando crescer", "musa inspiradora".
"Há muita vida fora dessa caixinha que chamam de lar. Avó não foi feita para cuidar de neto", diz a cearense, destacando que não acha justo ver mulheres receberem os filhos e netos de volta em casa após casamentos desfeitos.
A servidora pública Lilith Feitosa, filha mais nova de Jô, ainda terminava a sua graduação quando a mãe disse que estava saindo de casa. A mistura de surpresa, raiva e saudade foi dando espaço ao entendimento pelo momento que a mãe queria viver.
"O usual é os filhos saírem de casa e os pais ficarem com a síndrome do ninho vazio. Comigo foi o contrário. Mas vejo que ela se reinventou: vinha sendo mãe a vida inteira, mas resolveu ser outra coisa", diz a jovem de 24 anos, que mora em Camocim, no litoral cearense, a milhares de quilômetros do Vietnã.
A reinvenção de Jô também veio para o tipo de viagem. Saíram de cena hotéis caros, malas de rodinha e entraram mochilas, albergues e quartos coletivos. O ambiente, geralmente mais jovem e de interação, estimula o contato com viajantes, mesmo que seja a partir de um inglês "capenga".
No Camboja, fez amizade com uma congolesa que sabia falar português e leu o que estava escrito em sua camisa: "Como se escreve felicidade? Viajar". Também encontrou um dos muitos companheiros de viagem, o português Victor, um encantamento "passageiro".
"Não tenho mais pretensão de ter uma pessoa. Tenho amizades que partem para o encantamento e namoro. Mas meu lema é 'eles passarão, eu passarinho'", diz se baseando na poesia de Mario Quintana. Com Victor, rodou o Camboja e o Vietnã de moto, o meio de transporte mais comum por lá.
Para os filhos que ficaram, a preocupação com a mãe aos poucos vai se dissipando, na medida em que ela vai ganhando mais experiência pelo mundo. Jô já perdeu celular no Quênia, passou por situações de assédio no metrô de Nova Delhi, na Índia, e chegou a ficar dois dias sem dar notícia.
Mais tarde, os filhos souberam que ela estava com novos amigos num acampamento de beduínos nas margens do mar Morto e, por isso, sem conexão. A cearense, entretanto, minimiza sua coragem: "O segredo é você acreditar nas pessoas. As pessoas não são más. Se não confiar, não vale de nada sair por aí sozinha", aconselha.
E Jô, enquanto mulher, não segue desacompanhada. De acordo com último levantamento sobre intenção de viagem divulgado pelo Ministério do Turismo, em 2017, 17,8% das mulheres brasileiras desejavam viajar sozinhas nos próximos meses —índice maior que a de homens (11,8%).
Já em pesquisa de outubro de 2018, a companhia aérea British Airways revelou que 50% das brasileiras já viajaram sozinhas e que 56% pretendiam fazer esse tipo de viagem nas próximas oportunidades. A pesquisa foi realizada, segundo a empresa, por causa da percepção dos funcionários sobre o aumento do número de mulheres sozinhas nas aeronaves.
ECONOMIZAR PARA VIAJAR
Antes de se aposentar, Jô já dava sinais que iria ganhar o mundo. Sempre falava em viagens, gostava de ficar fora de casa e economizava dinheiro. "Eu não achava que ia se tornar realidade. Me perguntava o que tinha de errado com a vida dela: qual é o problema em ter raiz?", dizia Lilith. Jô respondia: "Casa prende muito a gente".
A cearense conta que passou a fazer economia de verdade a partir de 2008, sem revelar o quanto acumulou nos oito anos seguintes. Dois anos antes de iniciar sua saga, em 2015, cortou todos os "luxos" e passou a viver, segundo a própria, de forma "franciscana". Não saía mais aos fins de semana, cortou idas a restaurantes, a salões de beleza e gastos com roupas e outros bens materiais.
Certa vez, estava numa palestra e uma aluna a perguntou se ela estava precisando de dinheiro emprestado para pintar o cabelo. "Eu tinha que me acostumar com uma nova vida. Se eu queria viajar por aí, não iria mais tratar do cabelo. Então, fui encarando já essa realidade".
Com o aluguel do apartamento e a aposentadoria, a sua renda mensal atualmente é de R$ 8.000, que usa integralmente nas viagens.
Durante a volta ao mundo, Jô também economiza. Carrega o próprio pó de café, tem uma jarra elétrica para fazer água quente, macarrão instantâneo e come bastante vegetais, evitando uma dieta com carne.
Outra dica é: antes de entrar nos países, tentar ao máximo se acostumar com o valor da moeda, pesquisando a cotação, para não fazer maus negócios. "Não saio gastando. Não vou morrer se não fizer tudo turístico que tem numa cidade. Eu fico olhando as pessoas apressadas, mas eu sigo devagar".
Assim como mantém um diário de viagem no Facebook, a aposentada também registra a vida em cadernos, desde os anos 1980. Nesses diários, já relatou a vida de casada e a chegada dos seus três filhos. Hoje, relata as viagens.
No caderno que a mãe deixou com Lilith, está a passagem de sua gestação, da descoberta ao parto, em 1994. Ler os relatos é a forma que a filha encontrou para matar a saudade da mãe quando não a tem por perto. "Ela conta nesse diário como foi a espera por mim. Agora, eu que espero por ela".
VIOLÊNCIA DE FORTALEZA
Nos últimos três anos antes de pegar o primeiro avião, a atuação de Jô em defesa da população LGBT transformou as décadas de relativa calmaria em uma rotina de ameaças: "falavam que eu ia pagar pela minha audácia".
O período coincidiu ainda com o fortalecimento de facções criminosas nos presídios do Ceará, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), o Comando Vermelho (CV) e a local Guardiões do Estado (GDE). A violência na cidade e no sistema, segundo ela, estava atingindo um patamar "insuportável".
As ameaças que Jô sofreu tinham a ver principalmente com o trabalho que vinha fazendo com mulheres transexuais em presídios cearenses. Ela não admitia o tratamento que era dado a elas. "Os presos cortavam os cabelos delas, as unhas, davam surra mesmo. Mandavam ficar sentadas no sol nos horários de visita, separadas", relata.
Jô conseguiu a transferência dessas presas a alas mais tranquilas nos presídios e elas começaram a gozar de maior liberdade.
Com as detentas, desenvolveu um fanzine, um tipo de publicação independente e amadora, chamado de Só Babado, onde relatavam as situações de dentro da cadeia. A publicação virou tema de trabalhos universitários e até de documentário. O cenário de visibilidade, entretanto, revoltou mulheres de presos e agentes penitenciários, que chegaram a fazer abaixo-assinado para tirar Jô de suas funções.
"Aquelas pessoas não podiam ser tratadas com dignidade? Não podia admitir isso", explica. Como último ato, Jô conseguiu que as mulheres transexuais fossem transferidas a uma unidade prisional que foi dedicada ao grupo LGBT, logo após uma rebelião que deixou ao menos 5 mortos na Casa de Privação Provisória de Liberdade (CPPL) 3, na Grande Fortaleza.
Se o cenário violento contribuiu para a decisão da aposentadoria, ele não é a razão principal apontada por Jô para rumar em direção aos aeroportos. Ela gosta de relatar que, quando pequena, se sentia encantada ao ver a chegada de trens ou até de um pau de arara na cidade, com as pessoas carregadas de malas. "Era uma coisa linda. Eu dizia para o meu pai que eu queria ser 'passageira' quando crescer".
O "crescer" de Jô veio aos 57 anos.