'Cowboy Bebop': Yoko Kanno relata inspirações e empecilhos ao criar trilha
Compositora do anime na década de 1990 volta para versão live-action
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A série de anime "Cowboy Bebop" estreou no Japão em 1998, combinando um lado futurista de viagens no espaço, as histórias brutas do western espaguete e o visual estilizado dos filmes noir. Em 2001, a Cartoon Network exibiu uma versão dublada em inglês da série, apresentando às audiências americanas o cortês, mas complicado caçador de recompensas Spike Spiegel e a tripulação maltrapilha da espaçonave Bebop.
O desenho animado importado também apresentou aos espectadores americanos a compositora Yoko Kanno, cuja canção-tema para a série, extremamente grudenta, se tornou uma das mais reconhecíveis na tradição do anime.
Suas composições ecléticas –com doses de jazz, solos melancólicos de saxofone e riffs de harmônica de blues– eram parte essencial da série que se tornou um sucesso cult, ajudando o diretor, Shinichiro Watanabe, a estabelecer o clima para cada calote sofrido, para cada duelo furioso, para cada flashback romântico tristonho e para cada cena de perseguição entre espaçonaves.
A série terminou por ganhar fama mundial como animê de primeira linha, graças em boa medida ao som ousado e estridente de Kanno. Por isso, quando as equipes de produção do Tomorrow Studios e da Midnight Radio decidiram criar uma adaptação da história em formato "live-action", o produtor executivo da nova série, André Nemec, acreditava ser "crucial" convencer Kanno a retomar a batuta, ele disse.
"Os fãs de ‘Bebop’ sabem o quanto a identidade sonora da série é importante", disse Nemec. "É um animê extremamente amado, e por isso nos esforçamos ao máximo para acertar esse aspecto da produção". A série estreou na última sexta-feira (19) na Netflix, e Kanno uma vez mais comandou a música.
Em quatro meses, ela regravou diversas das faixas essenciais da trilha, e criou novos temas para os 10 episódios de uma hora de duração, que incluem jazz da era Sinatra, metais latinos e até mesmo rock alternativo da década de 1990. A trilha sonora da nova versão também foi disponibilizada nos serviços de streaming de música no dia de lançamento da estreia da versão "live-action" na TV.
"Ela imediatamente começou a espalhar sua magia", disse Nemec sobre o retorno de Kanno. "Yoko realmente compreende a arte de contar histórias, e vive nesses personagens". Mas não é como se Kanno estivesse desocupada, sentada com o telefone na mão à espera de uma ligação.
Nos 20 anos transcorridos desde a estreia da versão original de "Cowboy Bebop", ela se tornou uma das compositoras mais famosas do Japão, e criou a trilha sonora de "Kids on the Slope", outra elogiada série de Watanabe, e música para outros animês, videogames e filmes, além de arranjos para astros do pop japonês.
Em 2019, ela compôs uma peça chamada "Ray of Water", executada na cerimônia de coroação do imperador Naruhito. E regeu a orquestra que executou a composição. Mas a decisão de voltar ao espaço com a tripulação da Bebop foi muito fácil, explicou Kanno. "Sou fã incondicional da série".
Em uma conversa por vídeo, de Tóquio, com a assistência de seu tradutor, Kanehira Mitani, Kanno falou sobre se reunir com sua antiga banda, chamada Seatbelts, para regravar algumas das faixas, e sobre a necessidade de recorrer aos cinco sentidos a fim de criar uma paisagem sonora interestelar. Abaixo, trechos editados de nossa conversa.
Qual foi sua reação quando a procuraram para compor a trilha da nova série?
A primeira resposta foi uma sensação de surpresa. Porque a série de anime original já tinha 20 anos, fiquei surpresa por resolverem fazer uma versão "live-action" agora. Fiquei surpresa com a coragem deles.
Como você compararia trabalhar na nova série à sua experiência no original?
Na versão anime, Watanabe, na verdade, não me deu qualquer instrução. Assim, o que fiz foi criar toda aquela música, e o diretor e a equipe de criação montavam as coisas e colocavam no anime. Ouvi dizer ser essa a abordagem de Ennio Morricone na época em que ele compunha trilhas para westerns. Mas na versão "live-action", nós tivemos de ver o material e perceber onde encaixar a música.
Como isso funcionou na prática?
Recebi o roteiro cerca de três anos atrás. Só por volta de abril deste ano vi pela primeira vez o visual da série na forma em que foi gravada. E enquanto esperava, eu imaginava como a música seria, e colocava aquelas ideias em gestação. Quando vi as gravações reais, as ideias que eu tinha foram deixadas de lado, e comecei tudo de novo.
O que mudou, ao ver as imagens gravadas?
No anime, a principal imagem que você tem é a de Spike Spiegel, que perdeu todas as suas emoções devido ao seu passado traumático. Ele está no meio de uma história de reconstrução pessoal ao passar por todas aquelas aventuras perigosas. Era essa a imagem que eu tinha no começo, mas quando vi John Cho nas gravações percebi tons mais sutis em sua atuação. Era como se ele tivesse uma fraqueza, que ele de alguma forma preza e quer incorporar. E isso me fez mudar de abordagem quanto à música.
Na nova trilha, você trabalhou com gêneros musicais como o ska e o dub, que não faziam parte do original. O que a levou a incorporar esse tipo de som?
Na série de anime, não havia muita matança, na verdade. Na versão "live-action", onde isso acontece mais, eu senti a responsabilidade de tentar aliviar aqueles momentos, para que as mortes não parecessem explícitas demais ou para fazer com que parecessem irônicas ou cômicas.
E você revisitou algumas das composições originais. Como foi voltar a se encontrar com os Seatbelts para gravar as novas versões?
Fizemos uma versão mais "madura" da música original. É quase um milagre ter alguns dos artistas que tocaram 20 anos atrás ainda em sua melhor forma, e tocando juntos de novo. É uma coisa muito rara.
Os sons de "Cowboy Bebop" lhe pareceram familiares quando você começou a gravar, ou você teve de se reacostumar a eles?
A gravação começou só em abril, o que é um cronograma bem apertado. Tínhamos de completar a trilha de cada episódio em duas semanas. Foi uma batalha bem sacrificada, e por isso não tive o luxo de voltar e pensar no que a música [original] era. Esse tipo de ambiente, intenso, de prazo aperado, era parecido com o da gravação original do animê. Eu trabalhava correndo, sem me preocupar muito, e deixava a música me levar. Pensar demais não dá bons resultados. Spike também tem essa personalidade: "Não pense, sinta".
As precauções quanto à Covid afetaram as sessões de gravação?
O que teria acontecido normalmente é que eu viajasse a Los Angeles para acompanhar todas as sessões. Mas por surgir a pandemia, tive de repensar minha abordagem. Fiz um par de sessões de gravação remotas, mas o "lag" no registro inevitavelmente se provou insuportável, mesmo que fosse de apenas uma fração de segundo.
Se estou tocando alguma coisa e não tenho feedback ao vivo, minha motivação realmente despenca. Por isso, fiz as sessões de gravação no Japão, para poder comparecer e ver a coisa toda. O que foi um benefício para a série, porque músicos que normalmente estariam ocupados demais para participar puderam fazê-lo, já que suas outras sessões foram canceladas por causa da pandemia.
Seu processo criativo também foi afetado pela pandemia?
Sim. Ao criar a música, usualmente me inspiro em cheiros, sabores ou sentimentos, e não necessariamente em estímulos audiovisuais. Se eu desejo expressar "o mar", prefiro ir ao mar, mergulhar e sentir as ondas e a atmosfera geral. O ambiente todo digital complicou esse processo, neste caso.
Quer dizer que você não conseguiu engajar seus sentidos da maneira que normalmente faz ao compor?
Exatamente. Nos quatro meses e meio de produção musical, reuniões via Zoom e troca de demos, eu quase não saí do estúdio no porão. Pouco a pouco, comecei a me sentir frustrada, insatisfeita, e sabia que os personagens da série estariam se sentindo da mesma maneira. Uma sensação de desconexão com a Terra.
Por isso, ao compor para as diferentes locações [da série], eu mergulhava na memória –minhas experiências de visita a áreas perigosas e cheias de pichações em Nova York, ou a atmosfera de Tijuana, do Texas e do Arizona, aquela sensação arenosa, e o sabor de comida feita de ingredientes artificiais.
Que outros vínculos sensoriais com os personagens e ambientes de "Cowboy Bebop" a inspiraram?
A comida com que eles têm de encher seus estômagos vazios, as bebidas baratas. A sensação efêmera de não pensar muito sobre o futuro. A sensação de que eles tratam mal os seus veículos, como eu fazia quando tinha uma picape velha e esculhambada.
Luz artificial penetrando o escuro do espaço, uma sensação como a de chegar a Las Vegas vindo de Los Angeles em uma viagem noturna. Em ternos de como o mundo foi construído na versão "live-action", houve um uso de materiais velhos bem ao modo "steampunk", e tínhamos aquela sensação de aspereza.
Eu estava muito consciente da sensação de que havia ferrugem presente, durante toda a série. E assim eu tentei criar, também para a música, um clima de coisas usadas, coisas de segunda mão. Eu fazia uma gravação em um take só, e aí acrescentava efeitos sonoros com algo de enferrujado, quase sujo.
Qual foi sua sensação ao ver o produto concluído?
Fiquei empolgada e muito orgulhosa. Imagino que muitos fãs estejam preocupados com a maneira pela qual a equipe de criação vai lidar com um mundo que eles amam tanto. Para eles, eu diria que é a mesma coisa, mas diferente! E é realmente divertido de ver. Espero que a série dure muito. Quero ver Faye [uma caçadora de recompensas na série] se tornar uma velhinha, ainda disparando suas armas, sempre cheia de empáfia, com filhos e netos ao redor dela. Sim, isso é algo que eu adoraria ver.
Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci