Febre turca: Brasileiras criam rede paralela para compartilhar séries e novelas da Turquia
Fãs se organizam para legendar vídeos no Youtube e no Telegram
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"Chega um ponto da vida que a gente não come, não dorme, não conversa, não faz nada, a gente só quer saber o que vai acontecer na série turca." É em tom bem-humorado que a coordenadora pedagógica R.V., 49, fala sobre a sua obsessão pela teledramaturgia da Turquia.
Ela não está sozinha. A febre turca é uma realidade para muitos brasileiros —especialmente mulheres acima dos 40 anos— que não se importam por qual meio vão ver às séries e novelas, desde que possam acompanhar dia a dia ou semana a semana o desenrolar das tramas.
Como muitas dessas atrações estão longe da TV e das plataformas de streaming no Brasil, as espectadoras vorazes procuram grupos nas redes sociais e canais no YouTube que se dedicam exclusivamente a divulgar a dramaturgia turca. Muitos deles são comandados por fãs desse tipo de conteúdo, que se organizam inclusive para fazer as legendas do turco para o português.
A reportagem conversou com mulheres que só assistem e outras que assistem e atuam nessas redes de distribuição. Todas garantiram que nada pagam, recebem ou lucram com isso. Mesmo assim, por não se tratar de uma distribuição oficial, os nomes das entrevistadas foram preservados —no caso das que fazem as legendas, elas serão identificadas pelos codinomes que utilizam nesses grupos.
O Telegram é hoje um dos principais meios em que são disponibilizadas as histórias turcas. Alguns canais na rede chegam a reunir mais de 100 mil membros, como o da novela "Emanet", um dos grandes sucessos do país. No YouTube é possível também encontrar vídeos, como os de episódios da série "Erkenci Kus" ("Pássaro Madrugador"), com 5 milhões de visualizações.
Para entrar nesses canais do Telegram, basta ter um link de acesso, que normalmente é divulgado em outros chats de fãs no próprio aplicativo ou no Instagram e em outras redes sociais dos grupos. Nestes canais não há conversa entre os membros, apenas são divulgados os arquivos com os capítulos das tramas. Após denúncias, alguns deles foram derrubados nas últimas semanas.
E como são feitas as legendas do turco para o português? Em geral, as responsáveis por esse trabalho não falam turco, ainda que tenham aprendido algumas palavras ou expressões ao longo do tempo. O processo de tradução é feito todo por programas já existentes, como o Google Tradutor ou semelhantes.
As próprias legendas, ainda no turco ou com uma primeira tradução precária para o português, são baixadas em arquivos com extensão SRT. O serviço, segundo três legendadoras que foram entrevistadas pela reportagem, é todo voluntário.
Em alguns casos elas chegam a tirar dinheiro do próprio bolso. Séries novas, que estão no ar na Turquia, por exemplo, contam com legendas já prontas em inglês, pelas quais elas pagam em torno de US$ 5 (R$ 28) por episódio. "Fazemos uma vaquinha para comprar", relata Dya Abla, 45.
Mais experiente do trio, a dona de casa relata que começou a ver produções turcas ainda na TV aberta, por influência da mãe, que assistia à novela "Sila: Prisioneira do Amor", exibida na Band em 2016. Depois, ela foi atrás de outras tramas que já tinham sido transmitidas no Brasil, como "Fatmagül: A Força do Amor" e "Mil e Uma Noites".
"Mas elas eram dubladas, não gostava de dublado. Comecei a ver em turco mesmo e fiquei fascinada pela língua", afirma. Achou também muitas produções em espanhol —a febre turca atinge outros países da América Latina— e começou a pesquisar como legendar. "Eu gostei tanto que queria que as pessoas aqui no Brasil pudessem assistir comigo", diz.
Se embrenhou em grupos de fãs brasileiras e diz ter aprendido o ofício de legendar sozinha. Hoje, relata Dya Abla, existe até uma espécie de "escolinha" para ensinar outras aficionadas pela teledramaturgia turca a fazer o trabalho.
Foi o que aconteceu com a também dona de casa Déia Turquia, 40, que aprendeu a legendar com professoras do grupo. Assim como muitas outras fãs desse tipo de conteúdo, seu primeiro contato com produções turcas foi por meios oficiais —no caso dela, a série "Intersection", exibida na Netflix. "Eu comecei a assistir numa fase muito difícil da minha vida. Achei por acaso. Eu vi tudo em um mês. Passava 24 horas assistindo", conta.
Ela se emociona ao dizer que a teledramaturgia turca a ajudou a sair de uma depressão e que a maior recompensa pelo trabalho é receber o agradecimento de outras mulheres. "Legendar, para mim, acho que faz parte do meu tratamento. Sou muito grata por essa oportunidade e por poder proporcionar isso para tanta gente", diz ela, com lágrimas nos olhos.
CENAS ERÓTICAS VETADAS E ROMANCES IMPOSSÍVEIS
O que explica o sucesso das produções turcas? "Para ser sincera, uma das partes que eu mais gosto das séries turcas é que não tem, desculpe a palavra, putaria", responde MárciaR, 50, que descobriu as produções no fim de 2018 e começou a legendar tempos depois, como forma de sair "da monotonia".
"A gente fica doida para ver um beijinho, que é a coisa mais difícil de sair. Ultimamente toda série ou novela que você vai assistir, seja inglesa, americana, brasileira então, é só sexo, só falta de educação", diz.
De fato, são raríssimos os beijos nas tramas turcas, e cenas eróticas e nudez são proibidas pela censura. As emissoras que desrespeitam as regras são multadas pelo governo autoritário do presidente Recep Tayyip Erdogan.
"No passado éramos mais livres, mas, nos últimos anos, mais restrições foram impostas. Agora, por exemplo, beijos não podem durar mais que três segundos ", afirmou o ator Furkan Andiç, da série "Everywhere You", ao jornal El País.
A reportagem do jornal espanhol, publicada em setembro de 2020, mostrou que a Turquia se tornou na última década uma "fábrica de novelas" e já é considerada a segunda maior exportadora mundial de ficção para a TV, atrás apenas dos Estados Unidos.
Para muitas das fãs brasileiras, essas restrições acabam se tornando um atrativo, porque exaltam o amor romântico e impossível. "É um encantamento, um olho no olho, um toque sutil", suspira a dona de casa M.Z., 58, que se diz completamente viciada nos dramas turcos.
Para a coordenadora R.V., as produções do país proporcionam uma fuga da realidade. "Agora, por exemplo, enquanto estou falando com você, vejo na TV a história da Prevent Senior e já penso que, se a empresa falir, vou ter que pagar um plano mais caro para minha mãe. Prefiro ver série turca, entendeu?", diz a fã.
Não à toa, muitas delas se apaixonaram por esse universo no início da pandemia. Foi assim com M.Z., que perdeu o pai e teve Covid. "Tive de ficar sozinha de repouso, no meu quarto. Uma amiga falou das séries turcas, vi uma e fiquei apaixonada. Foi a minha terapia no meu pior momento", diz ela, que até começou a fazer aulas de turco.
Saber mais sobre a cultura e a forma como os turcos lidam com temas como luto e religião são outros atrativos das produções, ressaltam elas. "É claro que há exageros. Em algumas séries, todas as cenas têm uma lua cheia enorme", diverte-se R.V. "É uma coisa meio que você sabe qual vai ser o final, mas, mesmo assim, você fica ali assistindo."
Mas nem tudo é só cultura, história e romance açucarado. "Os atores são lindos", diz a legendadora Déia. E há muitas tramas que mostram cenas de ação e violência. "Lá o que mais tem é tiro, porrada e bomba", acrescenta MárciaR.
É ILEGAL VER?
As legendadoras entrevistadas para esta reportagem defendem que só traduzem produções que não estão disponíveis na TV brasileira ou em plataformas de streaming. Afirmam ainda que acessam todo o conteúdo dos sites oficiais das emissoras turcas.
A advogada Nancy Satiko Caigawa, presidente da Comissão de Propriedade Intelectual da OAB São Paulo, explica, porém, que toda e qualquer forma de utilização de uma obra audiovisual "deve ser sempre precedida de autorização do seu titular e autor".
Segundo ela, reproduzir, distribuir ou legendar séries e novelas é uma violação da lei, mesmo que a atividade não vise o lucro ou que a produção seja de outro país —se há lucro envolvido, a infração passa a ser considerada crime qualificado. "O Brasil é signatário de tratados internacionais, e a lei de direito autoral brasileira expressamente garante aos estrangeiros uma proteção", enfatiza.
De acordo com a especialista, quem assiste esse tipo de conteúdo também pode estar violando direitos autorais. "Ninguém está querendo equiparar quem consome o conteúdo ao pirata contumaz que distribui esse material com o intuito de lucro. A gente não está falando do mesmo potencial lesivo", responde a advogada.
Para ela, porém, é importante que o público se conscientize. "Se você é apaixonado por aquela novela ou série, é mediante o consumo legal que você viabiliza a atividade econômica que sustenta os atores, os autores, os roteiristas", afirma. Ela salienta, ainda, que esse tipo de conteúdo pode deixar o espectador sujeito a ataques de vírus e outros tipos de ameaça virtual.
PLATAFORMAS INVESTEM EM CONTEÚDO TURCO
De olho na alta demanda por produções turcas, plataformas de streaming se mobilizam para adquirir produções do país. O Globoplay, por exemplo, anunciou em julho as novelas "Fatmagül" e "Uma Vida Nova" em seu catálogo.
A empresa do Grupo Globo diz, por meio de sua assessoria, que as tramas fizeram sucesso e se "mantiveram no top 5 de consumo VOD [vídeo sob demanda] durante os primeiros 30 dias na plataforma", com "destaque para 'Fatmagül', que liderou o ranking de novelas estrangeiras no mesmo período". O Globoplay informa, ainda, que novos conteúdos turcos serão disponibilizados em breve.
A Netflix disse que possui 12 séries e novelas em seu catálogo, dentre as quais algumas produções originais da empresa. A HBO Max não respondeu à reportagem --na plataforma é possível assistir a conteúdos turcos como as séries "Um Milagre", "A Escolha" e "Meu Lar, Meu Destino".