O que há por trás de programas de encontro em que participantes não se veem
Netflix repete fórmula e aposta agora no reality Sexy Beasts
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Apaixonar-se por uma pessoa cuja aparência engana é uma história velha como o mundo. No folclore, é um motivo que cruza hemisférios, exemplificado por histórias do tipo “A Bela e a Fera”, nas quais uma mulher obrigada a viver com uma fera se apaixona pelo animal e só recebe mais tarde a feliz notícia de que ele na verdade é um belo príncipe. (O índice Aarne-Thompson, que os folcloristas empregam para categorizar tipos de histórias, classifica essa popular trama como nº 425C.)
Em Sexy Beasts, uma série de namoro que estreou na Netflix na semana passada, a ideia é interpretada literalmente e aplicada a todos os participantes. Eles participam de encontros heterossexuais, mas usam quantidades descomunais de maquiagem de efeitos especiais.
Os casais tentam estabelecer conexões românticas sem qualquer conhecimento quanto aos traços craniofaciais de seus parceiros, excetuada a cor dos olhos e, em alguns casos, a aparência geral da boca.
Os participantes precisam usar máscaras que encobrem suas cabeças e os convertem em feras, até que sua verdadeira face seja revelada –ou porque o participante foi eliminado do programa ou por ter se dado bem, sendo escolhido como vencedor.
Por nenhum motivo especial, o cenário primário do programa é a Knebworh House, uma grande propriedade rural em Hertfordshire, no interior da Inglaterra, que serviu como cenário para o Wayne Manor na versão de “Batman” filmada em 1989.
As próteses faciais são maravilhosas e a topografia dos rostos que elas ocultam é impossível de prever. Porque cada peça só podia ser usada uma vez e porque a empresa que cria os adereços não sabia quais dos participantes seriam dispensados depois de cada encontro. Escultores tiveram de criar três dias de próteses faciais completos para cada participante, um total de 148 peças.
“O imenso volume de próteses que terminaram por não ser usadas na série, apesar de estarem prontinhas, dá dor no coração”, disse Kristyan Mallett, o criador das próteses, cuja empresa, a KM Effects, ficou encarregada de transformar os participantes em criaturas dos campos, das águas e dos infernos.
O CULTO DA PERSONALIDADE
A hipótese subjacente a muitos programas de encontros na televisão não muda desde que o formato surgiu: a personalidade é um recurso melhor para medir a compatibilidade em um relacionamento do que a admiração mútua por atributos físicos.
A obsessão das audiências de televisão por essa forma de encontro “às cegas” remonta a 1965, quando uma cortina começou a ser usada para separar os aspirantes a encontros em The Dating Game. Simon Welton, o showrunner de Sexy Beasts é estudioso dessa escola.
“Isso vai parecer horrível, mas acredito de verdade que é a personalidade que conta”, disse Welton. “Quando você começa a ficar velho, feio e degradado, como eu, tudo que resta é a personalidade”.
Nas décadas transcorridas desde a estreia de The Dating Game, os participantes de programas de encontros se tornaram adeptos cada vez mais fanáticos dessa lógica. Os participantes de Sexy Beasts parecem considerar os atributos visuais como na melhor das hipóteses um falso indicador, e na pior um verdadeiro obstáculo à busca do verdadeiro amor.
Em entrevistas introdutórias, eles expressam culpa pelo fato de que sua atração por outras pessoas pode ser influenciada em qualquer medida pela aparência física.
“Minha esperança seria me apaixonar por alguém sem saber que aparência a pessoa tem, mas, honestamente, eu me conheço e não sei se isso é possível”, lamenta um dos participantes de Sexy Beasts durante um episódio.
A nobreza dessa aspiração passa sem contestação. Sacrificar o conhecimento sobre a aparência de um parceiro, prossegue esse arrazoado, é indicador de um espírito honrado e de um coração aberto.
Mas será que o amor é mesmo cego, como afirma o título de Love is Blind, programa de encontros de grande sucesso que a Netflix exibiu em 2020, no qual homens e mulheres passaram dez dias conversando com diversos possíveis parceiros confinados em casulos adjacentes que permitiam que ouvissem seus interlocutores sem vê-los?
Os casais só foram autorizados a se ver quando um pedido de casamento tivesse sido feito e aceito, depois de os noivos e noivas terem sido levados em uma viagem de férias grupal ao México e depois forçados a viver por um mês em um complexo de apartamentos em Atlanta no qual também estavam seus colegas de programa –que tinham sido seus potenciais pares românticos ou seus rivais pela conquista de outros participantes.
Em seguida, os casais tiveram de planejar seus casamentos e decidir, diante das câmeras, se queriam mesmo se unir legalmente à pessoa de quem estavam noivos há semanas. Uma das participantes serviu vinho ao seu cachorro.
Ou, se o amor não é cego, será que o amor cego é de fato mais nobre? Fern Lulham, radialista cuja palestra na TEDx fala de suas experiências de namoro online como mulher cega, considera a ideia absurda.
“A suposição é a de que você se deixaria influenciar a tal ponto pela aparência de alguém que nada mais importaria”, ela disse. “A ideia é a de que você verá uma pessoa tão linda que o tirará do sério, e nada mais importará”.
A incapacidade de ver de Lulham não a torna mais apta a avaliar o caráter ou a compatibilidade potencial de um parceiro, ela disse –e tampouco reduz sua curiosidade sobre a aparência da pessoa.
“As pessoas sempre dizem que deve ser ótimo porque você não vai ser superficial. E eu logo explico que, odeio admitir, mas, sim, sou muito superficial”, ela disse.
A cegueira, ela disse, “não é uma pílula mágica que faz com que você deixe de se preocupar com a aparência da pessoa com quem sai”.
Lulham usa outras técnicas que não a visão para avaliar a aparência das pessoas com quem sai. Ao tomar o braço de alguém para ser guiada, por exemplo, “é fácil perceber se a pessoa tem um bom braço, musculoso, ou não. Você sabe de imediato que jeito físico a pessoa tem, que tipo de corpo”.
Ela diz que às vezes forma impressões sobre pessoas baseada em sua conversa, mas “tão logo eu as abraço ou algo assim –e você aprende a criar essas situações quando é cega, permita-me dizer, você encontra maneiras de contornar os obstáculos– logo penso que, nossa, a pessoa não se parece nem um pouco com aquilo que imaginei”.
Presumir que a atração física seja irrelevante para quem não pode ver “é um desserviço aos cegos”, disse Lulham. “Isso na verdade só faz com que sejamos vistos como ainda mais estranhos pelas outras pessoas”.
“Você continua a ser você em todos os demais aspectos, fora o fato de que não pode ver”, ela disse. Você continua a ter o mesmo tipo, se tinha um tipo. Você continua a gostar do mesmo tipo de pessoa”.
A ideia original de Welton para um programa em que as pessoas ficariam ocultas sob máscaras também exigia que eles obscurecessem suas identidades. Essa versão da ideia, que ele chamou de Mrs. Datefire, levaria um homem que tinha esperanças de sair com uma mulher a encontrá-la inicialmente vestido de mulher, com maquiagem ao estilo do filme “Uma Babá Quase Perfeita”.
A ideia foi abandonada porque máscaras humanas parecem mais reais diante das câmeras do que a olho nu. Em pessoa, disse Welton, os participantes “sentiriam que há algo errado”. Outro motivo para a rejeição foi que os homens testados não conseguiam interpretar com sucesso uma mulher mais velha.
O QUE ESTÁ EM JOGO
O risco implícito de qualquer programa que impeça os participantes de ver seus potenciais pares românticos é a decepção quando as aparências forem enfim reveladas. Em resumo: alguém pode ser feio.
Essa ameaça jamais admitida, combinada à alta responsabilidade envolvida em um casamento formal, foi o que transformou Love is Blind, da Netflix, no programa de encontros talvez mais viciante entre todas as séries que promovem encontros às cegas.
Embora os casais formados na série talvez parecessem aos espectadores ter sido criados por um fenômeno que tinha algo em comum com a síndrome de Estocolmo, eles ofereciam um vislumbre de credibilidade.
Quando enfim se encontravam diante das câmeras, os participantes tinham passado dias sem fazer outra coisa que buscar se convencer e convencer os parceiros, sobre a validade de suas conexões.
Abandonar essa decisão imediatamente requereria não só que admitissem que estavam profundamente enganados sobre si mesmos e deixar de lado uma viagem ao México com todas as despesas pagas como poderia expor seu sentimento de culpa pelo pecado de usar a aparência como critério, na avaliação de um potencial parceiro.
Pelo menos uma participante de Sexy Beasts, uma americana bonita que falou sob a condição de que seu nome não fosse divulgado antes da exibição do episódio, se preparou para o que presumia ser a meta dos produtores: provar que pessoas sem atrativos podem ter personalidades fascinantes.
A participante disse em entrevista ter calculado que os colegas de programa seriam uma mistura entre “modelos” e “pessoas com nem tanto assim de modelo” –um eufemismo delicado para “pouco atraentes”. Era sua segunda participação em um programa de encontros.
“Eu pensava que escolheria alguém e ele seria horroroso e o objetivo todo do programa seria esse”, disse a participante. “Pessoas que eu normalmente não escolheria, sabe?”
Mas a realidade de Sexy Beasts fica exposta no nome. O programa não se chama Bestas Possivelmente Sexy, ou Bestas Aqui, Sexy Lá, ou Muitas Bestas, Alguns Sexy. Para ser mais específico: muitos dos participantes dos seis primeiros episódios são modelos –atores/modelos, aspirantes a modelos, “modelo e ex-cientista”, mas todos modelos ainda assim.
O aspecto mais inexplicável do programa é o fingimento de que aquelas pessoas precisariam competir por um encontro. Elas não estão lá porque o potencial parceiro é necessariamente desejável, ou incomumente compatível, ou pela oportunidade de viajar a Playa del Carmen.
Os participantes parecem estar tomando parte de um bizarro programa televisivo de encontros concebido como penitência. (Em termos práticos –um aspecto deixado rapidamente de lado porque não é boa TV—, as ambições de uma carreira como modelo também podem ter alguma influência.)
A expressão mais autêntica de um ímpeto humano em Sexy Beasts não está nos anseios amorosos dos participantes nem em sua aparente convicção de que é preciso passar por tudo aquilo a fim de localizar e conquistar o amor.
Está no homem que, com o rosto completamente obscurecido por uma cabeça de castor feita de espuma e coberta de pelos artificiais, explica calmamente à câmera que seleciona parceiras românticas com base primeiro na qualidade de suas nádegas, “e depois na personalidade”.