Televisão
Descrição de chapéu Crítica

'Salve-se Quem Puder' tem boas sacadas em meio ao pastelão de praxe das sete

Faminta por homens, personagem de Deborah compensa a chatice das demais mocinhas

Deborah Secco na novela em Salve-se quem puder: estreia - Reprodução
São Paulo

Novela das sete da Globo invariavelmente começa com um certo exagero de pastelão. Nesse quesito, "Salve-se Quem Puder", que chegou ao horário nesta segunda-feira (27) não decepciona. É irritante, mas necessário, tecnicamente, um didatismo que explique quem é quem na história e quais as funções reservadas a cada personagem, o que é compreensível para capítulo de estreia.

A partir daí, caberá ao autor Daniel Ortiz nos surpreender e evitar que todos se encaixem perfeitamente nas arestas que lhes parecem traçadas neste comecinho de trama, onde todos os passos são milimetricamente ensaiados e paira no ar um aspecto onde tudo soa falso -porque exageradamente encenado. 

Mario, o pai de Luna (Juliana Paiva) vivido por Murilo Rosa, faz a filha jurar que nunca procurará sua mãe, que abandonou os dois. Quanto ressentimento. Luna não pode perder o emprego, pois precisa se formar e cuidar do pai. Tampouco consegue perdoar o namorado, a quem não beija porque não perdoa o beijo dele em outra mulher, três meses antes, quando estava bêbado. Quanta virtude.

Agners (Carolina Kasting) é a mãe gata sorridente que acha tudo lindo na filha, Kyra (Vitoria Strada), que ri de tudo e sorri para todos, inclusive pela desgraça de ser tão estabanada, defeito que conquistou seu amado, Rafael (Bruno Ferrari). Quanta gente feliz.

Tudo soa falso, todo mundo acha graça em todo mundo. Mas não é assim que acontece nos musicais e, em especial, nos filmes musicais?

Sim, e a referência se evidencia com uma cena de um espetáculo musical onde Alexia (Deborah Secco) brilha muito. O tom de musical é endossado pela sequência em que Rafael pede Kyra em casamento no meio de um tráfego em São Paulo, à noite, em dia de incessante chuva.

Alexia é o grande ponto de rompimento desse lenga-lenga, amém, e mostra-se, até aqui, a ponte de salvação da novela. Devoradora de homens, ela mira os bonitões com a mesma sede que os homens vêm enxergando as bonitonas em novelas ou qualquer programa de TV há décadas.

Essa inversão de papéis, por si só, já é um grande ganho na nova trama. A audiência feminina agradece e se sente recompensada. Como sacrifício para alcançar seu objetivo de fazer uma novela na Globo, ela assume que fez uma promessa de "dieta" de homens. Biscoitos de polvilho são, para Alexia, uma espécie de remédio contra a dita abstinência.

A rivalidade entre ela e a irmã, Petra (Bruna Guerin), a arrivista que inveja a mana e quer se dar melhor que ela, é outro ponto alto do enredo, desafogando o espectador da glicose que transborda dos outros núcleos.

O risco de vida a que o juiz de Ailton Graça está exposto endossa um bom contraponto aos açucarados diálogos em torno de Kyra e Luna. Para os noveleiros profissionais, há várias referências divertidas no primeiro capítulo, além do tom de musical já citado.

A mocinha Luna chora diante do final de uma novela mexicana, gênero desprezado por nós, críticos, e pela empáfia da própria Globo, que, cá para nós, faz produções muito mais bem acabadas. Mas, mundo afora, o melodrama mexicano é um sucesso há décadas, e o próprio Ortiz já trabalhou para a TV Azteca, rede daquele país, como produtor e roteirista de outros gêneros. 

Também se reconhece o universo da dramaturgia quando Kyra vai ao teatro com o namorado para ver um musical que, como tem ocorrido na vida real, está lotando o teatro. Mas ela, que nunca ouviu falar em Alexia, se sai com esse texto: "Você conhece essa atriz? Eu nunca ouvi falar. Que novela ela fez?" O diálogo é absolutamente verossímil, como normalmente ouvimos (e até perguntamos) diante de nomes de atores que não estão na TV: "Que novela ela fez?" 

Outra situação comum nesse métier: Felipe Simas, no papel de um jovem diretor, diz que não liga para novela, só está fazendo TV para ganhar um dinheiro e montar a sua produtora, pois gosta mesmo é de documentário. 

Ao brincar com metalinguagem, é certo que Ortiz se divirta escrevendo, com boas chances de divertir o público. Mas é preciso despir ligeiramente aquela gente exageradamente boazinha. A abertura, seguindo os preceitos de capturar crianças e jovens nesse horário, embarca nas cores da animação, em clima caribenho.

Sob direção de Fred Mayrink, o folhetim foi aberto com os efeitos especiais que deram muito trabalho e consumiram dias de gravação, do furacão que determinará os rumos da trama, uma chuvarada com relâmpagos, forte vendaval e, claro, carro capotando, outro ingrediente infalível para primeiro capítulo. É impressionante como a Globo gosta de estragar carros em estreias, principalmente na faixa das 19h.