Em livro, Edney Silvestre lembra clima político de 1964 para refletir sobre o Brasil de hoje
Jornalista foi premiado com 'Se Eu Fechar os Olhos Agora'
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Figura marcante como repórter em telejornais da Globo desde os anos 1990, Edney Silvestre, 69, passou a ser reconhecido pela ficção a partir da obra “Se Eu Fechar os Olhos Agora” (2009), que lhe rendeu o prêmio Jabuti de literatura e teve sua história transformada em minissérie, pela emissora, sob direção de Carlos Manga Jr, em 2018.
Como nos livros anteriores, “A Felicidade É Fácil” (2011), que passa pelo período do presidente Fernando Collor de Mello, e “Vidas Provisórias” (2013), que mistura personagens e tempos tratados nos seus livros anteriores, o seu novo romance “O Último Dia da Inocência”, segue a mesma linha: a de entrelaçar fatos históricos a personagens ficcionais.
É por meio de suas histórias de mentira, que Silvestre quer mostrar como os fatos reais –muitos dos quais ele próprio relatou ao longo de sua carreira– estão conectados a histórias comuns. Em “O Último Dia da Inocência”, o comício da Central do Brasil, pré-golpe de 1964, serve de pano de fundo em meio à rotina atrapalhada de um jornalista jovem sem nome, que faz a cobertura de um crime.
O jovem se vê testemunha de um assassinato, do qual se torna o principal suspeito. Enquanto tropas do Exército, conspiradores e manifestantes vão se juntando no centro do Rio de Janeiro, ele procura quem possa ajudar a inocentá-lo.
Em entrevista ao F5, Silvestre fala como seu novo livro conta sobre um passado que tem muito a ver com o nosso presente –totalmente polarizado, em que “há a esquerda de um lado, a direita do outro e mais nada no meio desse caminho”. Revela que negou outras propostas de transformar seus livros em filmes, que adora quadrinhos e que sonha em escrever um livro infantil.
Correspondente em Nova York e apresentador do programa GloboNews Literatura por alguns anos, ele se deparou com ídolos, como os escritores Norman Mailer (1923-2007) e José Saramago (1922-2010)–esse último que o fez acreditar em seu próprio talento.
Agora, como escritor, ele diz que as duas profissões se entrelaçam e, por isso, só vai abandonar o cargo de repórter no dia em que ele for demitido e for obrigado a dizer: “Parti para novos desafios”, brinca. Confira trechos da entrevista com Edney Silvestre.
Quando começa a ficção e quando entra a realidade em seu novo livro?
Tudo o que eu faço de ficção sempre tem esse pé na realidade. Quando eu estava no meio de ‘Se Eu Fechar os Olhos Agora’ estourou a história do mensalão, que me impactou muito. E comecei a pensar no quanto a história do mundo altera as nossas vidas, mesmo quando parece ser algo muito distante.
Seja o [John] Kennedy ou o [papa] João 23, que são figuras internacionais, já influenciaram nossas vidas. Mesmo os jovens já ouviram falar sobre o período Collor, por exemplo. Quem tinha um pouco de poupança em um dia, no outro, não tinha mais nada. Conheci pessoas que venderam imóveis para depois investir e acabaram sem ter onde morar.
Em ‘O Último Dia da Inocência’, qual história veio primeiro, a real ou a fictícia?
Quando os personagens aparecem, eles já surgem situados dentro do mundo, do nosso país. Dentro de São Paulo no caso de ‘A Felicidade É Fácil’, no Rio de Janeiro, em ‘O Último Dia da Inocência’, eles já nascem ancorados nessa realidade. Não há essa separação de um ponto. E isso não é novo. Um dos exemplos disso é Nelson Rodrigues [1912-1980] que se ancorava na realidade e era jornalista, também.
O personagem [de ‘O Último Dia da Inocência] já veio nos anos 1960. Na minha geração, hoje talvez um pouco menos, o último degrau do jornalismo era a cobertura de polícia. E aí eu me lembrava das coisas que aconteceram comigo. Quando ele surgiu, surgiu sem nome e já no Instituto Médico legal, em 1964, e naquele dia [do Comício da Central do Brasil]. A partir daí, comecei a investigar o impacto do golpe na minha vida. Naquela época, eu era um menino mais jovem, ainda não via os fatos como jornalista.
E que conclusão você chegou, lembrando aquele tempo?
O processo de escrita [deste livro] nasceu um pouco antes da polarização [que vivemos], mas escrevendo ao longo dos últimos três anos, essa situação em que uns estão de um lado e o outros de outro, sem poder ter nada no meio foi ficando cada vez mais clara. E me dei conta de que a situação era semelhante em 1964. Havia ‘esquerda’ e a ‘direita’ e nada no meio caminho. Não havia possibilidade de uma outra solução.
Hoje, se você cita algo como o presidente eleito, a resposta é ‘você preferiria que não houvesse a Lava Jato’? E não se trata disso. Naquela época, era a mesma coisa. Nas redações, ouvíamos aquelas conversas provocativas, como ‘você ouve o que? a rádio de Moscou?’. Eram diálogos de surdos. Estamos em uma época, muito parecida com aquela. Ouvi inúmeras conversas parecidas com essa [a que ele retrata no livro]. Hoje mal se dá tempo para tomar um café na redação, mas fazia parte da rotina ouvir esses debates entre veteranos, enquanto os jovens ficavam invisíveis, apenas ouvindo.
Como conciliar o trabalho do jornalista e do escritor?
Nunca escrevi ficção em tempo livre dentro da redação, principalmente em plantões. E quando começava uma linha, eu era interrompido por algo, como aqueles deslizamentos que tiveram na serra carioca [que ocorreram em 2017]. Consigo escrever no avião, no aeroporto, mas nunca na redação. Só escrevo a ficção quando eu libero essa parte mais inconsciente.
Além do jornalismo, o que te influenciou a criar? Você trabalhou na produção de trabalhos visuais também, certo?
Há uma inegável influência de Charles Dickens, que é cinematográfico, e dos quadrinhos, pelas formas como eu passo de um capítulo a outro. Eu também lia de tudo na biblioteca lá em Valença [RJ], eu não lia pensando o que era alta literatura e alta literatura. Eu lia Thomas Mann porque é bom, e Tarzan porque eu gostava. Amo filmes de aventura também e fico chapado em ver como alguém é capaz de fazer algo como ‘Dor e Glória’ [último longa de Almodóvar].
Você faria quadrinhos?
Duas coisas que gostaria de fazer: quadrinhos e infantil. A Fátima Bernardes já me sugeriu um livro sobre um menino disléxico, que era meu caso. Eu não conseguia aprender matemática, invertia números, sofri na escola. Mas nunca consegui [escrever o livro].
Há um livro de um menino conhecido meu que tem problemas de aprendizagem. A história é sobre um galo que não consegue cantar e, por isso, a noite não acaba e o dia não nasce. Todos dizem que ele deve ir para a panela, mas os outros animais tentam aprender com ele. Até que o papagaio faz o mesmo som, e o sol volta a surgir. É algo lindo e muito difícil de se fazer.
O que aprendeu com os grandes nomes que entrevistou ao longo Globo News Literatura?
Quando eu era correspondente em Nova York, eu entrevistei estrelas de cinema, mas quando fui entrevistar [o escritor] Norman Mailer eu tinha palpitações. Achava mais interessante, durante os lançamentos de filmes, falar com o roteirista, que falava da criação, do que com as estrelas. Atores criam também, claro, mas eu ficava abobalhado de falar com esses caras. Só percebi isso muito tempo depois.
Em 2008, quando eu entrevistei o Saramago [1922-2010], eu estava no meio de ‘Se Eu Fechar os Olhos Agora’, empacado, porque eu achava que era um livro grande demais para mim. Comecei com uma história que se passava no interior com dois meninos, conforme ela avançou, ela começou a ir mais para trás, passou pela ditadura do Getúlio [Vargas] e foi pro racismo, e foi para o século 19, vale do café, escravidão. Achava aquilo grande demais pra mim. Depois que entrevistei Saramago tive uma identificação. Nunca o Silvestre estará na mesma prateleira de Saramago, sem sacanagem, mas ele, filho de uma faxineira com guarda civil, avós analfabetos, começou também a escrever tarde. Com isso, eu percebi que o que eu posso contar, ninguém vai contar, porque cada um sabe de sua vida. E pensei, por que não?
O senhor imaginava que o livro seria premiado e transformado em série?
Quando a editora decidiu publicar o livro, ela falou: ‘você está preparado para esse turbilhão’? Achei que era algo bonito que um amigo dizia, mas acabou sendo mesmo. Recebi diversas propostas para filmagem, mas achei tudo muito equivocado. Havia uma proposta inglesa que transformava a história inteira em um melodrama de traição e morte de uma mulher, independentemente de todo o contexto político, aí não interessava. Seria uma destruição do que eu acredito. Quando o Ricardo [Linhares] quis adaptar, eu fiquei encantado. A produção andou muito rápido com Murilo Benicio, Antonio Fagundes e aquelas duas crianças maravilhosas.
Desistiria do jornalismo só para ser escritor?
Gosto de redação. Vivo dizendo que o dia que me virem fora da redação, eu fui demitido. Gosto de conversar com os colegas, sair para fazer matéria, tudo isso me enriquece. Isso tudo é encantador pra mim. Sou repórter e ele se mistura ao escritor. Se eu resolver me ‘dedicar a novos desafios’ é porque eu fui demitido.