Música de MC Kevin virou ferramenta para dar esperança a jovens periféricos
Funkeiro morreu neste domingo ao cair de sacada de hotel no Rio
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A música de MC Kevin, 23, foi símbolo maior da força de transformação social do funk. Falecido no último domingo (16) após cair do quinto andar de um hotel na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, o cantor fez da sua obra uma ferramenta para construir as esperanças de um novo horizonte de possibilidades para a vida da juventude periférica. A arte era um meio para imaginar um futuro outro, para além da miséria, subempregos, sofrimentos e humilhações perpetuadas pelas desigualdades do Brasil e dos estereótipos de violência construídos pela mídia.
Muitas das músicas de Kevin, sobretudo seus primeiros sucessos, como "Veracruz" (2015) e "Amassa a Placa" (2016), versavam sobre festas e diversas formas de prazer —do sexo ao consumo, passando pelo fascínio dos veículos importados. Apesar disso, classificar sua obra como mera ideologia hedonista é esvaziar a profundidade de significados que essas canções de festa possuem no contexto do funk (em específico) e das músicas das periferias (no geral).
No universo poético de Kevin, a festa é uma utopia efêmera ou um modo de inverter o jogo, mesmo que só por um momento. Se não é possível desfazer as hierarquias sociais de imediato, a festa se torna uma brecha através da qual é possível zombar delas. "Praia, gandaia e logo após/ Bye na cara dos boy", cantou ele em "Cavalinho", hit em parceria com o MC Don Juan que destaca a "gandaia" como forma de deboche e enfrentamento de classes. Em "Pra Inveja é Tchau" (2018), com o MC Davi, a curtição (também chamada de bololô ou revoada, no vocabulário de Kevin e outros MCs paulistas) era um recurso para falar sobre autonomia e uma vida livre de vigilância e olhares discriminatórios.
Gerações anteriores do funk, especialmente do Rio de Janeiro, encontraram nas questões políticas um tema premente para sua música, debatendo o racismo e a guerra às drogas de forma explícita —pense no "Rap da Felicidade", de Cidinho e Doca, ou em "Vida Bandida", do MC Smith. Kevin mobilizava o imaginário político e social de outra forma. Ouvindo desavisadamente, poderíamos classificar como uma autoajuda. Mas o apelo que o cantor fazia à potência disruptiva e criadora da imaginação sugere algo mais. Em "Cavalo de Tróia" (2018), ele se aproximou do rap e evocou a arte como um meio de repensar a realidade, de modo a construir um outro mundo. Kevin poetizou a criatividade como um tipo de pensamento sem censura, onde são desenvolvidas as possibilidades de transformação. "A mente é fértil, para sonhar não tem limites", cantou ele.
Nascido e criado na Vila Ede, zona norte de São Paulo, o MC estourou os seus primeiros sucessos quando ainda tinha 18 anos. Os seus trabalhos mais recentes, perto de completar 23, mostravam uma busca pelo amadurecimento, na qual o funkeiro olhava a própria vida pelo retrovisor. Lançado em fevereiro, o álbum "Fênix" tinha como carro-chefe o trap confessional "Arco-Íris", em que ele relembra a época em que vendia drogas para ajudar no sustento da família. Em "Hit do Ano", feita coletivamente com os ex-colegas da produtora de funk GR6, ele homenageou a mãe em versos de redenção e superação.
Presença transversal no funk paulista, Kevin tinha amizades com os maiores MCs da cidade e participou de momentos decisivos da expansão do movimento. Ele pode ser visto, por exemplo, nas cenas do clipe "Baile de Favela" (2015), do MC João, e "Grave Bater", de Kevinho. Apesar disso, nos últimos anos ele vinha se envolvendo constantemente em polêmicas com outros artistas (sobretudo com o MC Livinho, com quem se reconciliou antes de morrer) e com a sua então namorada, a advogada Deolane Bezerra (com quem se casou há duas semanas, no México). As discussões públicas ajudaram a popularizar seus bordões "esquece, fi!" e "quem acordou, acordou".
Em abril, após uma série de acusações sobre repasses de lucros abaixo do devido, Kevin rescindiu o contrato com a GR6, uma das maiores produtoras de funk de São Paulo. Nas últimas semanas, ele fez as pazes com a empresa, que fora sua casa profissional durante anos, e abriu a sua própria produtora, a Revolução Record, que preparava os próximos lançamentos do cantor.
Em meio aos tumultos da vida pessoal, um mês antes da morte, ele lançou uma faixa intitulada "A Última", uma crítica à criminalização do funk. "Falar que o funk é crime, pro governo é concorrente/ Saber que o sonho do filho dele é ser um da gente/ Meu brilho tá brilhando mais que sua sirene". A meteórica vida de Kevin foi precocemente interrompida, mas esse brilho ainda iluminará a vida de milhões de jovens que vislumbraram novos caminhos de vida através do seu funk.
Doutorando em Estéticas e Culturas da Imagem e do Som na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco)