'Bridgerton' desperta interesse pela moda britânica da era da regência
Em tempo de confinamento, fãs de roupas de época se divertem nas redes sociais
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Um mundo de espartilhos, corpetes e chemises. De vasquins, anquinhas, pantalonas e saias de armação. Para os atores, usar figurinos de época há muito tempo significa literalmente pisar no passado: confinar a carne moderna a formas antiquadas, e aprender a usar o vaso sanitário sem ter de desvestir múltiplas camadas de roupas.
"Bridgerton", a série racialmente diversa produzida por Shonda Rhimes e passada na Inglaterra de 1813, despertou um novo interesse instantâneo pela moda britânica da era da regência. Mas uma comunidade internacional de amadores dedicados vem desenhando, fazendo e vestindo roupas do século 19 e de séculos anteriores há muitos anos.
Por muito tempo uma obsessão privada, alimentada por filmes como "O Leopardo" e "Orgulho e Preconceito", a mídia social estendeu a conversação, e fãs de todas as idades e origens, e do mundo inteiro, hoje trocam informações sobre como fazer o acabamento de um punho ou ajustar um chapéu de palha.
Antes da pandemia, eles se reuniam em Los Angeles na conferência anual Costume College, no Carnaval de Veneza e nas Fêtes Galantes de Versalhes. Alguns europeus afortunados, como Filippa Trozelli, terminam convidados a usar suas roupas de época em festas realizados em imóveis históricos.
Trozelli, 29, que no Instagram usa o nick @comtesse_comtesse, é avaliadora de joias em Estocolmo, e a casa de sua família está repleta de retratos de antepassados. Aos 25 anos, depois de se formar em história da arte e estudos culturais, ela foi atropelada e teve de passar 18 meses se recuperando. Com horas sobrando em seu dia, ela começou a assistir a tutoriais no YouTube sobre como costurar roupas históricas, e a procurar livros de moldes e informações.
À medida que sua competência aumentava, ela começou a fazer aulas de dança de época, e a participar de festas mensais com outras pessoas fantasiadas. “Não há como compreender realmente a história sem vestir a roupa”, ela diz. “Você ganha uma compreensão toda diferente.”
Trozelli é "grande admiradora" de Merja Palkivaara, 38, uma companheira de obsessão que trabalha como mecânica de automóveis em Sipoo, Finlândia, e cujas meticulosas criações lhe valeram 521 mil seguidores. "Ela é a melhor! Fico pasmo! Aquela mulher é um gênio!”, diz Luca Costigliolo, que vive em Gênova, Itália, e desenha e usa figurinos históricos, além de ensinar sobre eles na School of Historical Dress de Londres.
Palkivaara começou a fazer roupas de época 15 anos atrás, inspirada por um vestido de cetim vermelho do filme "Moulin Rouge. "Essa coisa toda de costurar é fora da norma para mim", diz. "Cresci envolvida com o automobilismo, consertando carros, mas espartilhos e lingerie me fascinavam e eu os colecionava. Adoro todo tipo de roupa feminina, e por isso foi divertido achar um jeito de colocar esse amor em ação."
Até agora, ela já produziu entre 20 e 30 figurinos históricos, e chegou a fazer um par de botas historicamente autênticas. Palkivaara elogia Costigliolo como "um de meus heróis pessoais", por sua compreensão das silhuetas de época; especialistas concordam em que os estilos mais luxuosos são arruinados pelo uso de roupas de baixo modernas, em lugar dos espartilhos e corpetes que criam as silhuetas historicamente corretas.
Costigliolo começou a fazer e usar espartilhos aos 11 anos de idade, e quando tinha 16 anos começou a usá-los sob seus jeans ao frequentar a escola de arte de Gênova. "Eu era obcecado por Scarlett O’Hara e sua cintura de 43 centímetros", diz. "Eu era obcecado por Anna Karenina."
Com o apoio da família, e por viver em uma cidade portuária singular que adora a excentricidade, ele passou a usar roupas de época com frequência crescente em público, por exemplo, uma reconstrução do vestido que O’Hara usou em seu luto, que ele vestiu em uma viagem de trem a Veneza durante o carnaval. A internet tornou essa obsessão juvenil mais fácil de compartilhar. “Hoje se pode explicar as coisas mais intimamente”, diz. “Comecei cedo demais.”
Cada um dos envolvidos tem um motivo diferente para apreciar os figurinos históricos, diz Costigliolo. “Para mim, eu precisava de algo que me desse força”, afirma, para se assumir como gay. “Para as mulheres, o motivo pode ser ter um corpo que não parece bonito em roupas modernas, ou amar um estilo por motivos puramente estéticos. Também é uma jornada mental, para compreender uma era. E acrescenta um pouquinho de poesia à vida."
Muitos homens que usam roupas de época o fazem para participar de encenações ou atividades, como a reprodução de batalhas da Guerra Civil americana ou cenas da era Tudor na Inglaterra. Mitchell Kramer, 52, ator que mora em uma casa construída 200 anos atrás em Filadélfia, se transforma em Benjamin Franklin há 15 anos, quer para palestrar em conferências, quer para ler publicamente a declaração de independência dos Estados Unidos, em Valley Forge.
O percurso de seu aprendizado “foi muito trabalhoso”, diz. “Li tudo que havia para ler.” Ele também estudou um terno original que Franklin usava. Mas usar as calças e sapatos de época é uma obrigação profissional para Kramer, e não uma diversão. “Só coloco o figurino se for pago por isso.”
Alguns dos que desejam aprender as técnicas de costura e construção que essas atividades requerem procuram a School of Historical Dress, criada oito anos atrás em Londres, onde podem assistir a cursos curtos dados pela diretora da instituição, Jenny Tiramani, ganhadora de um prêmio Tony em 2013 e ex-diretora de design teatral no Shakespeare’s Globe Theater. As vendas de seus livros de moldes triplicaram desde a pandemia.
Hilary Specht Coffey, que trabalhou por 22 anos na Period Corsets, em Seattle (e comprou a empresa em 2012) diz que seus negócios dispararam desde o lançamento de “Bridgerton”, e os compradores parecem preferir seus kits, vendidos por US$ 100, aos espartilhos prontos, cujos preços variam, de US$ 200 a milhares de dólares. Ela também vende peças de sustentação: “bum rolls” por US$ 56, “hoop panniers” de bolso por US$ 368 e um “drum farthingale” por US$ 434.
O isolamento da pandemia, o desgaste causado pelo contágio generalizado e pelas mortes, e os meses de confinamento em casa com roupas folgadas podem transformar uma viagem ao passado distante, por meio de um “robe à la française” feito com dez metros de seda, ainda mais atraente. “Isso nos transporta completamente”, diz Coffey. “Você assume uma persona, algo melhor. A realidade cotidiana é sórdida e desgastante. Quando você se veste, reencontra seus modos.”
“Há um forte desejo de experiências elevadas”, diz Carolyn Anne Dowdell, historiadora de figurinos de Kingston, no Canadá. “Quero usar belos vestidos!”
Apesar da elegância, muitos entusiastas dos vestidos históricos se incomodam por número tão grande de pessoas em seu hobby serem mulheres brancas e aparentemente ricas. “É algo sobre o que venho conversando há anos, porque é uma situação desconfortável”, diz Palkivaara. “Nunca fui alguém que defenda valores tradicionais. Odeio pensar que isso pareça uma organização da elite branca. Espero que ‘Bridgerton’ torna o passatempo mais acessível.”
“A comunidade é majoritariamente branca, e sempre foi. É uma questão complicada com a qual a comunidade está lidando, com apelos por mais diversidade”, diz Dowdell. “A questão é real”, afirma Taylor Shelby, 38, que reproduz joias em Washington e também faz e usa roupas de época. “Há certa relutância em exibir riqueza e em criar um fetiche pelo passado dos Estados Unidos. Queremos que mais pessoas não brancas se juntem a nós, pela diversão. Há muito mais que podemos fazer."
Para Panni Malekzadeh, 35, artista americana de origem iraniana que vive em Los Angeles, usar figurinos históricos europeus complicados é uma afirmação política. “Por que eu não deveria usar essas belas roupas que os europeus brancos tinham o direito de usar?”, ela questiona. “Muitas vezes me sinto excluída. A única menina de pele marrom na festa.”
Vestir seda farfalhante e rendas delicadas acoberta a realidade severamente constrita dos séculos 18 e 19, quando as mulheres mais prósperas tocavam piano, bordavam e esperavam um marido –e desfrutavam de pouca autonomia. "O passado é divertido", diz Dowdell, “mas não desejaríamos viver naquela época”.
Tradução de Paulo Migliacci.