Encontrei o amor verdadeiro numa loja de materiais de construção
Algo ali move minha libido, e não é bem isso que você está pensando; não se trata de sexualizar as tintas ou de objetificar os trabalhadores do ramo
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Minha libido nos últimos dias está totalmente focada em redecorar meu quarto, mais especificamente em pintar as paredes mesmo sem ter experiência na área. A textura das tintas provoca em mim uma sensação sinestésica que beira o prazer sexual.
É como se, ao diluí-las na água e misturá-las com uma colher, eu estivesse deitando a cabeça em um confortável travesseiro de penas de ganso coberto por uma fronha 100% algodão egípcio com 800 fios para receber uma massagem com creme sedoso.
Antes eram as tintas artísticas como guache e acrílica que faziam eu me sentir assim, mas esse ano resolvi expandir também para as de parede e madeira. Com isso, tenho frequentado menos as papelarias e casas de materiais para artistas e mais as lojas de materiais de construção.
Dei-me conta que esses ambientes fazem com que eu me sinta segura, amparada e cercada por tudo aquilo que preciso para sobreviver em situação de apocalipse. Quanto mais tradicional a loja, melhor: chão de cimento queimado, iluminação difusa, paredes cobertas por prateleiras cheias de latas misteriosas, vários tipos de pregos, parafusos, trinchas e ferramentas pairando sobre sua cabeça, isso sem falar dos funcionários trabalhando de camiseta e chinelo.
Decidi investigar por que esses elementos ultimamente conseguem mobilizar mais meu ímpeto do que buscar sexo no Bumble. Ok, talvez eu tenha chegado naquela idade da mulher em que tudo o que importa é ouvir podcasts de true crime e fazer algum tipo de artesanato. Mas acho que tem algo mais aí.
Para começar, o ato de pintar é bastante físico. Demanda esforço para abaixar e levantar e subir e descer da escada, consciência corporal para manipular o pincel e o rolo, um pouco de força e bastante delicadeza na hora de lixar. À medida que você vai esquadrinhando o recinto para cobrir buraquinhos com massa corrida, uma intimidade é criada com o espaço.
A parede não é mais uma parede, apenas. É aquela parede que você conhece bem, sabe como é o reboco e por onde ele começa a esfarelar, onde ela acumula finas teias de aranha e quais são as outras cores que ela já teve no passado. Cria-se um envolvimento corporal que vai se tornando emocional: na hora que você termina a pintura o resultado final pode ser muito pior do que teria sido se você chamasse um pintor profissional, mas você tem a satisfação de olhar para ela e pensar "é tosca mas é MINHA".
Já a loja de materiais de construção é a anti-Faria Lima. Cobri economia durante dez anos e muito já circulei pela avenida onde mais circulam especialistas em mercados do Brasil. Afirmo sem medo de generalizar que eles todos exalam o cheiro da insegurança misturada com colônia pós-barba cara adquirida no free shop depois da última viagem a Miami.
A pose desse pessoal é de saber de tudo, fazer e acontecer, mas um olhar mais incisivo e você nota que eles são tão firmes quanto areia movediça de desenho animado antigo.
Em contraposição, o funcionário experiente de uma loja de materiais é resoluto como uma rodovia recém pavimentada. Ele conhece bem o conteúdo de cada lata misteriosa, os meandros de cada ferramenta, o jeitinho certo de usar cada trincha, a maneira mais econômica de espalhar o selador e não vai se furtar de compartilhar esse conhecimento com você.
É um local em que todas as explicações são solicitadas, necessárias, úteis, tangíveis, práticas, materiais, inexoravelmente reais, e não o castelo de cartas do mercado de fundos de investimento.
Não se trata de sexualizar as tintas (ainda que eu não julgue os fetiches alheios) ou de objetificar os trabalhadores do ramo e sim de reconhecer o que, nesse universo particular, mobiliza tanto minha energia, para além do prazer estético de ter um quarto mais bonito. Aconchego (de uma tinta fosca), intimidade (de uma parede que se revela aos poucos) e segurança pragmática (dos profissionais) parecem ser bons caminhos para algo merecer minha devoção e economia libidinal.