X de Sexo Por Bruna Maia
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Aniversário de Linda Lovelace nos lembra por que ela virou ativista contra a pornografia

Estrela do clássico 'Garganta Profunda' foi vítima de várias violências e coerções na indústria

A atriz Linda Lovelace - @lindasusanboreman no Instagram

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No começo dos anos 2000 ainda existiam as locadoras de vídeo. Era tipo um streaming, só que bem menos prático. Você ia até lá, se associava, percorria as prateleiras, escolhia os que queria, passava no balcão, ia pra casa, colocava no videocassete, assistia, rebobinava, e entregava de volta.

Várias dessas lojas tinham uma portinha discreta que conduzia aos filmes adultos. Mas, na locadora que eu ia, havia um pornô que não estava escondido. Ele estava na prateleira dos clássicos, junto a "Amarcord" de Federico Fellini e "De Salto Alto" de Pedro Almodóvar. Era "Garganta Profunda", filme de 1972 escrito e dirigido por Gerard Damiano, mas cuja grande e eterna estrela é a protagonista Linda Lovelace (nascida Linda Boreman), que teria completado 75 anos no último dia 10, não tivesse falecido em 2002.

O que levou um filme pornográfico a essa prateleira prestigiada? O fato de ele de fato ter sido alçado a clássico do gênero –o maior de todos. Na época, seu orçamento foi de US$ 47,5 mil (mais de R$ 230 mil no câmbio atual) e a arrecadação foi de US$ 1 milhão (quase R$ 5 milhões) nas primeiras sete semanas. Embora seja difícil confirmar esse número, algumas estimativas apontam que, até hoje, ele pode ter rendido US$ 600 milhões (algo próximo de R$ 3 bilhões) para seus produtores. E como "Garganta Profunda" conseguiu isso? Misturou putaria com cinema arte.

Os enquadramentos, fotografia, figurinos e atuações foram cuidadosamente pensados. Além disso, foi um dos primeiros "pornôs com história". Ele narra a aventura da bela e infeliz Linda, uma mulher que já tinha tentado tudo que é tipo de orgia sem nunca alcançar o orgasmo (isso é menos raro do que parece). Ela então se consulta com o Dr. Young, que descobre qual é seu "problema". O clitóris de Linda não estava na vulva, e sim no fundo da garganta. Ela precisava achar um homem com o pau grande o suficiente para chegar até ele.

Linda só conseguiria gozar, portanto, se fizesse uma garganta profunda (deep throath), prática que consiste em enfiar o pênis do parceiro o mais fundo possível, engolindo-o. Não é de se admirar que tantos homens tenham se encantado com esse enredo. A ideia de uma mulher que não só está disposta a fazer sexo oral com intensidade, mas que chega ao orgasmo fazendo isso é extremamente conveniente para eles, não é mesmo?

É fantasia de cinema, vocês sabem. O clitóris fica na vulva, não tem jeito, e se você não consegue encontrá-lo ali pulando na sua cara, não vai ser na garganta que vai achar. O que não quer dizer que praticar garganta profunda no parceiro não possa ser prazeroso para quem curte. Mas nada de sair enfiando o pau na garganta alheia porque para isso, como para tudo em sexo, precisa de desejo e consentimento.

Sei o enredo desse filme de cor porque estava tentando convencer meu namorado da época a gostar de filme cult. Um dia vimos essa fita na prateleira, nos olhamos e a pegamos sem precisar falar nada, junto com um filme muito chato de algum diretor francês que eu fingia achar legal. Para ser bem sincera, "Garganta Profunda" era melhor que o filme francês. Tanto na parte artística e técnica como nos diálogos. E pelo menos nos deixou com tesão, coisa que nouvelle vague nunca conseguiu. A gente transou bastante aquele dia e eu até tentei, mas não consegui engolir o pau dele. Ele não se importou, mas ficou grato pela tentativa.

Anos e anos depois é que fui saber dos bastidores. Linda Boreman foi vítima de um relacionamento extremamente abusivo com Chuck Traynor, que a mantinha em cárcere privado e a obrigava a se prostituir. Foi ele que a coagiu a entrar na indústria pornográfica, em que fez outros filmes degradantes antes de "Garganta Profunda". Sim, a grande estrela do maior clássico pornô de todos os tempos atuou no filme sob coerção de seu parceiro abusivo, além de ter recebido pouquíssimo dinheiro pelo seu trabalho, que foi extremamente lucrativo para os homens que o produziram.

Ela só escapou de Traynor em 1973, fugindo. Em 1980, ela lançou uma biografia em que falou sobre as coisas que passou, e seu depoimento ao Congresso dos Estados Unidos foi importante para investigar os abusos da indústria pornográfica. Ela então se tornou militante antipornografia –não é difícil entender seus motivos, não é mesmo?

Linda faleceu em 2002, em decorrência de um acidente automobilístico. As fitas VHS e as locadoras de vídeo perderam o sentido não muito depois. Um dia, aquela locadora que eu frequentava estava vendendo as fitas VHS para se tornar uma lan-house —negócio que consiste em um lugar com vários computadores alugados por hora, e que também foi para as cucuias pouco depois.

"Garganta Profunda" estava à venda, por R$ 5. Comprei. Assisti mais umas duas vezes, sozinha, prestando atenção nos movimentos de câmera, sem uma siririca ou consciência de gênero sequer (cinéfilo é a coisa mais broxante do mundo).

Acho que a fita ficou com o meu namorado, eu nunca mais a vi. Não sei se ele ainda a tem. Não sei se ele sabe que o filme foi feito à base de violência, coerções, estupro. Mas espero que ele se importe, se vier a saber.