Tony Goes
Descrição de chapéu Filmes

A quem interessa que você veja 'Som da Liberdade' de graça?

Produtora distribui ingressos gratuitos para filme que agradou à extrema direita

Cena do filme 'Som da Liberdade', dirigido por Alejandro Monteverde - Divulgação

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Numa temporada dominada por "Barbie" e "Oppenheimer", "Som da Liberdade" se tornou um fenômeno inesperado nas bilheterias. Lançado nos EUA no dia 4 de julho, o filme viu seu faturamento aumentar nos finais de semana seguintes, algo raro na indústria de entretenimento.

O roteiro fala de um agente americano que vai à América Latina não só para desmantelar uma rede de tráfico de crianças, como também para resgatar as próprias vítimas. A premissa é meio absurda: milhares de meninos e meninas seriam sequestrados todos os anos, e vendidos para pedófilos. Um negócio que já superaria, em valores, o narcotráfico.

"Som da Liberdade" foi mal recebido pela crítica, que não gostou do tom quase religioso, da música melosa, das atuações canastronas. Mas o longa caiu nas graças da extrema direita, que viu representada na tela uma de suas fantasias mais delirantes: políticos do Partido Democrata americano estariam por trás do tráfico de crianças, para extrair delas um suposto soro da juventude.

Essa teoria enlouquecida é um dos pilares do QAnon, que começou como uma série de boatos infundados nas redes sociais e hoje é praticamente uma ideologia, com representantes no Congresso dos EUA.

O diretor e roteirista Alejandro Monteverde se defende de qualquer ligação com extremistas, pois o projeto teria começado em 2015 –antes, portanto do surgimento do QAnon.

Mas seus argumentos se enfraquecem quando sabemos que o ativista anti-tráfico humano Tim Ballard, adepto declarado do QAnon, trabalhou como consultor dos roteiristas, ao ponto de o personagem principal agora ter seu nome. O Tim do filme é encarnado por Jim Caviezel, o Jesus de "A Paixão de Cristo", de Mel Gibson, que é listado como produtor de "Som da Liberdade". Tanto Jim como Mel são conhecidos por suas simpatias pela extrema direita.

"Som da Liberdade" é produzido pela Angel Studios, também responsável pela badalada série "The Chosen", hoje um sucesso de proporções globais. A produtora introduziu no Brasil uma estratégia que já vem usando nos EUA: o sistema "pay it forward" (pague adiantado, em tradução livre), que permite a doação de ingressos para pessoas que não teriam condição de pagá-los.

O intuito não é exatamente aumentar o faturamento do filme. "Som da Liberdade" estreou no Brasil no dia 21 de setembro, e liderou as bilheterias do país no último fim de semana. Um dos eventos que impulsionou o sucesso do longa foi uma pré-estreia em Brasília, que contou com as presenças de Flávio Bolsonaro, Damares Alves e Mário Frias. Todos saíram da sessão se derramando em elogios.
O que quer, então, a Angel Studios? Simplesmente, fazer com que "Som da Liberdade" seja visto pelo maior número de pessoas possível, pagantes ou não.

Que intuito nobre, não é mesmo? Só que não. A esta altura, "Som da Liberdade" deixou de ser um filme para se tornar um instrumento de propaganda política da extrema direita, num momento em que ela está em baixa tanto nos EUA como no Brasil.

Além disso, quem quiser um ingresso gratuito para o filme precisa fazer um cadastro no site da produtora, fornecendo vários dados pessoais. Ou seja: você não só entra para o "mailing list", como seus dados podem ser repassados a outras organizações.

Tanto Trump como Bolsonaro estão na berlinda por causa dos ataques que fizeram à democracia, na tentativa de reverter o resultado das eleições que perderam. Sem poder defendê-los abertamente, seus adeptos adotam a manjada tática de atacar o "inimigo", imputando a ele crimes imaginários.

Tráfico sexual é coisa séria, assim como a pedofilia, e precisam ser combatidos com rigor. Mas os radicais de direita preferem atribuí-los a seus adversários políticos, e fazer com que os incautos assistam a filmes como "Som da Liberdade".

Não existe almoço grátis, diz o ditado. Cuidado: também não existe ingresso grátis.