Li o livro de Gustavo Scat para você não ter que ler
'Quero Scat' tem trechos insuportáveis, mas traz mensagem de tolerância
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Duas semanas atrás, a internet brasileira entrou em combustão espontânea. A revelação de que o ator Fernando Mais era a identidade secreta de Gustavo Scat, autor de um perfil sobre escatologia no Twitter, fez com que muita gente perdesse as estribeiras. Mais deveria ser preso, proibido de qualquer contato com menores de idade (afinal, ele fez um papel no filme "Turma da Mônica: Lições") e ter seu livro, recém-publicado, proibido para todo o sempre.
O resultado é que "Quero Scat - O Sexo com Cocô, Mijo e Peidos" tornou-se um best-seller, chegando ao primeiro lugar entre os mais vendidos na categoria "Erótico" da Amazon. Nas lojas online, é possível encontrar apenas a versão digital do livro. Quem quiser uma cópia física tem que encomendar num site especial. A versão simples custa R$ 60. A versão "para fãs" sai por R$ 195. A entrega está prevista apenas para a segunda quinzena de setembro.
A coluna leu a versão para fãs, na versão digital. A obra é colossal: tem 550 páginas, mais por causa da diagramação do que do texto. O corpo das letras é grande, há algumas ilustrações e muitos espaços em branco.
Também há inúmeras passagens francamente insuportáveis para quem não compartilha do mesmo fetiche do autor. Mesmo imbuído de responsabilidade profissional, este colunista não conseguiu ler tudo. O final do volume, que traz dezenas de entrevistas e depoimentos em que aficionados do scat narram suas aventuras com volúpia de detalhes, é de embrulhar o mais resistente dos estômagos, e eu achei que já tinha abusado o suficiente do meu.
Agora, quem estiver curioso para conhecer mais este universo oculto pode se esbaldar. O autor criou um autêntico manual para principiantes. A partir de sua própria história pessoal, Fernando Mais dá dicas de como os novatos podem se iniciar neste fetiche. Ele conta que se descobriu um fã do scat depois de ver o infame vídeo "2 Girls, 1 Cup", que viralizou em 2007 e é, para minha surpresa, uma produção brasileira. Inclui um glossário de termos usados pelos adeptos da prática, e explica cada um deles em minúcias.
Também explica que, sim, o scat pode fazer mal à saúde –assim como diversos outros fetiches, como o sadomasoquismo, e até mesmo o sexo sem camisinha. Mais recomenda aos praticantes um estilo de vida saudável, testes regulares para a detecção de doenças sexualmente transmissíveis e, acima de tudo, bom senso. Um conselho que vale para qualquer pessoa que tenha uma vida sexual ativa.
As partes mais interessantes de "Quero Scat" são uma conversa que Fernando Mais tem com um psiquiatra e uma longa carta de um rapaz de apenas 22 anos, que explicam as origens do fetiche a partir das teorias de Freud e Pavlov. Sim, a predileção por secreções humanas tem tudo a ver com o que acontece durante as famosas fases oral, anal e genital da vida do bebê, um dos pilares da psicanálise.
Mas o autor vai muito, muito, muito além. Aproveitando textos que ele conseguiu salvar de seu blog "Quero Scat", tirado do ar pelo Google de uma hora para a outra em 2022 sem maiores explicações, Mais inclui até receitas de bolos e milk-shakes, que seriam até engraçadas se não fossem tão repulsivas para os não-iniciados.
Também há dicas de como eliminar o fedor (aviso: mesmo com banhos e perfumes, ele só desaparece completamente depois de 24 horas), uma comparação digna de um sommelier entre as diversas cores e texturas de urina e fezes –o "número 1" costuma ser "salgadinho"; o "número 2", "amargo" – e o que comer e beber para produzir você mesmo as excreções desejadas.
Os textos são bem escritos, com humor e leveza. O próprio Fernando Mais se mostrou um cara bem-humorado, ao gravar um vídeo assumindo tudo depois de ter sido desmascarado na internet. Mas cabe a suspeita de que, no fundo, ele queria ser descoberto. Num dos capítulos, o autor dá uma descrição física muito precisa de si mesmo. Uma foto sua que teria sido alterada por inteligência artificial mostra alguém parecidíssimo com quem ele de fato é. Nos agradecimentos finais, Mais assina "F. P. M.", as iniciais de seu nome verdadeiro.
Sua breve carreira de ator parece encerrada. Para retomá-la, ele teria que mudar de aparência e de nome artístico, e, ainda assim, seria logo "denunciado" por um suposto guardião dos bons costumes. Mas um novo futuro profissional já se abre à sua frente: Fernando promete para breve um podcast onde conversará com praticantes de todos os fetiches, e não só o dele.
Para o leigo, "Quero Scat" é um mergulho às vezes fascinante e, muitas outras, apenas nojento, num submundo extremo, mas que está logo ali, bem nas nossas caras. Ninguém é obrigado a gostar ou participar: o autor ressalta inúmeras vezes que o scat tem que ser consensual, entre adultos, e que todo mundo tem que se divertir.
Passada a repugnância, a mensagem que fica do livro é para lá de positiva. Os adeptos da escatalogia têm uma filosofia interessante, que incentiva a autoestima: gostam do corpo humano como ele é, com todos seus aromas naturais, e repudiam os corpos idealizados, sanitizados, perfumados artificialmente.
"Quero Scat" também serve como um libelo em prol da tolerância. Nesses tempos de falso moralismo, nunca é demais lembrar que o que as pessoas fazem entre quatro paredes, se forem adultas e estiverem de comum acordo, é um problema só delas. Escatologia não é crime e não tem nada a ver com pedofilia, então que ninguém venha com o papo de "proteger as criancinhas". A repressão irracional ao prazer alheio é muito mais asquerosa do que o mais fedorento dos fetiches.