'Eurovision', o filme, finge ser uma sátira, mas é uma declaração de amor ao festival
Estrelado por Will Ferrell e Rachel McAdams, longa estreou na Netflix
O ator americano Will Ferrell é casado com uma sueca, e vai quase todo ano ao país natal de sua mulher. Foi numa dessas visitas, em 1999, que ele tomou contato pela primeira vez com um fenômeno europeu então pouco conhecido nos Estados Unidos: o Festival Eurovision da Canção.
Ferrell se encantou com a extravagância do evento e percebeu na hora que ali havia assunto para uma comédia. Na época, sua ideia não foi bem recebida em Hollywood. Mas o advento da internet fez com que o Eurovision pudesse ser visto no mundo inteiro e conquistasse legiões de novos admiradores. Mais de 20 anos depois de sua concepção, o filme "Festival Eurovision da Canção: a Saga de Sigrit e Lars" finalmente estreou na Netflix.
Por um acaso do destino, o longa também vem à luz no primeiro ano, desde 1956, em que o Eurovision não é realizado. Previsto para acontecer em Rotterdam, na Holanda, o festival foi cancelado por causa da pandemia e reprogramado para a mesma cidade, em 2021. Graças ao filme, os fãs mais exaltados poderão debelar suas crises de abstinência.
Produzido sob os auspícios da organização do evento, "Festival Eurovision da Canção" tenta se equilibrar sobre uma linha fina. Não pode tirar sarro demais, pois isto afastaria seu público-alvo. Tampouco pegar leve, sob o risco de se tornar um comercial com duas horas de duração.
O resultado é uma comédia irregular, alternando piadas de extremo mau-gosto com momentos de puro êxtase. O roteiro, coassinado por Ferrell, é propositalmente absurdo. O ator interpreta Lars Erickssong, um quarentão imbecilizado que sonha desde criança em representar a Islândia no Eurovision. Junto com sua vizinha e amiga Sigrit Ericksdóttir (Rachel McAdams), ele forma a péssima dupla Fire Saga, que nunca conseguiu nada além de tocar nos bares de Húsavik, uma pequena cidade no norte da ilha.
Aliás, se alguém poderia se ofender com o filme, são justamente os islandeses, retratados como um povo rústico que acredita em elfos e que fala inglês com sotaque caricato. Mas não consta que haja protestos em Reykjavik.
Por caminhos tortos, o Fire Saga consegue participar do festival, que no filme acontece na cidade escocesa de Edimburgo. Mas a incompetência da dupla provoca um desastre atrás do outro, antes de desembocar em uma previsível jornada de redenção.
Mesmo sendo o detentor da ideia original, Ferrell também é o ponto fraco do filme. Lars é um personagem desagradável, sem a menor empatia. Muito melhor está Rachel McAdams como a ingênua Sigrit. Mas quem rouba mesmo a cena é Dan Stevens ("Downton Abbey"), impagável como um popstar da Rússia que não pode assumir sua homossexualidade.
Seu inacreditável número musical, “Lion of Love”, não fica nada a dever à esplêndida cafonice das produções que frequentam o palco do verdadeiro Eurovision. Muitas outras canções originais também integram a trilha sonora, de nível bem mais alto do que as que costumam concorrer no festival.
"Festival Eurovision da Canção" talvez não interesse aos eurocéticos. Mas quem acompanha o festival vai se deliciar, até porque vários de seus artistas fazem breves aparições – inclusive o português Salvador Sobral, vencedor de 2017 com a belíssima “Amar pelos Dois” (que, aqui no Brasil, serviu de tema de abertura da novela “Tempo de Amar”, da Globo).
Para os eurofãs, o ponto alto do filme é uma sequência gravada em Tel Aviv, durante o festival de 2019. Durante uma festa, astros do Eurovision como a austríaca Conchita Wurst, a sueca Loreen e a israelense Netta se juntam para um pot-pourri que reúne hits como "Believe", "I Gotta Feeling" e "Waterloo" (a canção com que o ABBA venceu o festival de 1974).
Nesta cena que "Eurovision" deixa cair a máscara da sátira e revela o que de fato é: uma declaração de amor ao evento mais kitsch do planeta.