Tony Goes

No fundo, especial de Natal do Porta dos Fundos é terrivelmente cristão

Críticos do programa não devem tê-lo visto até o fim, ou nem começaram a ver

Cena do especial de Natal do Porta dos Fundos "A Primeira Tentação de Cristo" - Divulgação
São Paulo

Em seus últimos momentos na cruz, prestes a expirar, Jesus Cristo recebe uma visita. Um anjo aparece para lhe retirar os pregos dos pés e das mãos e ajudá-lo a descer. Jesus, então, vai embora do Gólgota e passa a levar a vida de um ser humano qualquer. Primeiro ele se casa com Maria Madalena, mas ela morre depois de alguns anos. Aí Jesus forma um trisal com as irmãs Marta e Maria, e tem um monte de filhos com elas.

Um dia, ele encontra o apóstolo Paulo pregando em praça pública, falando do Messias que morreu na cruz para nos salvar. Jesus tenta avisar que não foi bem assim, mas Paulo o enxota dali. Finalmente, já bem velhinho, Jesus recebe os discípulos em seu leito de morte. É então que Judas, o eterno estraga-prazeres, o admoesta: “você foi covarde, desceu da cruz, não cumpriu sua missão”. O anjo, na verdade, era Satanás. Arrependido, Jesus implora a Deus por uma segunda chance. E o Pai atende o pedido do Filho: Jesus rejuvenesce e volta a agonizar na cruz, finalmente aceitando seu destino.

Este é o final do filme “A Última Tentação de Cristo”, de Martin Scorsese, baseado no livro de Nikos Kazantzakis. As duas obras causaram celeuma quando foram lançadas, chegando a ser proibidas em diversos países. E isto apesar da trama, assumidamente ficcional, reafirmar a divindade de Jesus Cristo e a importância de seu sacrifício para a salvação da humanidade. Mas a ideia de um Jesus com desejo sexual, como qualquer outro ser humano –afinal, ele era tão homem quanto Deus– é demais para a cabeça de muita gente.

Em 1988, o filme de Scorsese teve sua exibição proibida na cidade de São Paulo pelo então prefeito Jânio Quadros. Trinta e um anos depois, vemos setores obscurantistas da sociedade reagirem da mesma maneira diante de uma obra com título semelhante: “A Primeira Tentação de Cristo”.


O novo especial de Natal do Porta dos Fundos para a Netflix mantém a saudável tradição de grupo de zoar não exatamente com a religião, mas com a maneira como as pessoas lidam com ela (atenção, não é a mesma coisa). O do ano passado, que mostrava um Jesus desonesto e beberrão, ganhou até o Emmy Internacional, mas não despertou maiores repulsas. O de 2019 sugere que Jesus era gay, e abriram-se as portas do inferno.

Jesus volta de um período de 40 dias no deserto e é recebido com uma festa surpresa pelo seu aniversário de 30 anos. Seus pais José e Maria decidem que é hora de revelar que, na verdade, seu pai biológico é o próprio Deus, que Jesus cresceu chamando de Tio Vitório. Para complicar, Jesus trouxe para casa um amigo que fez no deserto: uma bicha louca chamada Orlando, que o trata por “Dji”.

A partir daqui vem spoiler. Não consigo apresentar minha conclusão sem falar como termina o especial. Pare por aqui se não quiser saber.

Muito bem, prossigamos. Deus conta para Jesus que ele é o Messias e deve salvar a humanidade. Mas Jesus se recusa: está caidinho por Orlando e quer levar uma vida normal. Só que... Orlando, na verdade, é Lúcifer. Disfarçou-se para tentar Jesus no deserto –exatamente, aliás, como dizem os Evangelhos. Lúcifer derruba Deus, rapta Maria e acaba com a festa. O recalcitrante Jesus, então, aceita sua missão divina e peita o demônio. E o destrói.

Tanto Fábio Porchat (que assina o roteiro e interpreta Orlando) como Gregório Duvivier (que faz Jesus) são ateus assumidos. Por isto eu me surpreendi que este especial estrelado pelos dois, que tanta polêmica vem causando, seja, na verdade, um libelo que confirma toda a teologia cristã.

Isso mesmo. “A Primeira Tentação de Cristo”, assim como “A Última”, reafirma a divindade de Cristo e a importância de sua missão. Só ele consegue livrar a humanidade de Satanás. Nenhum dogma é questionado: até a virgindade de Maria segue incólume.

Tudo isso com muita galhofa, é claro. Um dos Reis Magos traz uma prostituta para a festa. José é um babaca que põe passas no arroz e maçã na maionese. Uma tia mais velha chamada Lupita (!) não tem o menor problema em ser racista. O verdadeiro alvo das piadas não é a fé, mas os conflitos e contradições que existem dentro de qualquer família –e que vêm à tona na época do Natal.

Quem critica “A Primeira Tentação de Cristo” não deve ter visto o especial até o fim. Parou na primeira insinuação da homossexualidade de Jesus, ou então só ouviu falar. Sequer apertou o play e já saiu por aí reclamando.

Esse programa, na verdade, é um instrumento de pregação religiosa. Uma obra de evangelização. Terrivelmente cristã –no sentido original da palavra “terrível”, porque meteu medo em alguns.

Quem diria, hein? Porchat e Duvivier entraram pela porta dos fundos para nos catequizar.