Um TikTok de milhões, uma TV de centavos e uma casa abandonada
Fiquei o dia todo presa nessa história e vi as coisas mais absurdas da vida
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Oito horas da noite do dia 20 de julho de 2022. Uma garota chamada Giulia faz uma live no TikTok, em frente ao famoso casarão da rua Piauí, no bairro de Higienópolis, em São Paulo, onde mora a personagem principal do podcast A Mulher da Casa Abandonada, Margarida Bonetti. Logo cedo, no mesmo dia, foi ao ar o sétimo e último episódio da série mais ouvida do momento, criada e roteirizada pelo jornalista Chico Felitti.
A garota repete sem parar: "Gente, me curte ai, gente, me seguem ai (sic!) pra live não cair, rumo a dez milhões. Nove virgula oito, rumo a dez milhões, gente, vai me seguindo, pra live não cair". Sinceramente, eu não sei qual a relação entre uma coisa e outra, mas continue lendo pra coluna não cair.
Giulia responde comentários, diz que tem informações exclusivas de um repórter do Cidade Alerta "que nem vazaram na TV ainda" e conta que a família de Margarida Bonetti deve buscá-la durante a madrugada. Alguém pergunta quem é Margarida, e ela responde. Em seguida, comenta que não aguenta mais, que ninguém ali aguenta mais, que estão lá desde cedo, o dia todo. Que ela não pode invadir e arrancar a mulher de lá. Mas que Margarida Bonetti vai ter que sair e que a live passou dos 10 milhões.
Eu também fiquei o dia todo presa nessa história e, confesso, vi as coisas mais absurdas da vida em termos de cobertura, foi um show de desinformação, especialmente na TV. Luisa Mell estava lá fazendo uma live no Instagram porque ouviu dizer tinha um "gato" na casa. Ela achou que fosse um felino e foi lá para resgatá-lo, mas assim que conversou com um policial descobriu que o suposto "gato" era roubo de energia elétrica!
Sim, a polícia foi à casa para verificar as condições em que Margarida estava vivendo na casa, se o fato de ela estar sozinha caracteriza ou não "abandono de incapaz" e ver se a energia elétrica estava mesmo ligada.
A Band estava cobrindo ao vivo, mas aparentemente ninguém tinha a menor ideia da história. Primeiro, Datena achou que Margarida fosse uma senhorinha acumuladora, abandonada pela família e, penalizado, repetia "todo mundo querendo ajudar a dona Margarida"! "Datena, ela não é a mocinha, ela é a vilã!!!", gritava eu em minha casa.
Depois, ele achou que a casa estava prestes a ruir, mas foi desmentido por um engenheiro. Em seguida, passou a tratar Margarida como senil, uma pessoa de idade de "falas desconexas". Outro engano. Margarida é lúcida. Eis que um dos convidados, um delegado, conseguiu se sair pior que o âncora: ele diz que Margarida estaria vivendo naquele casarão "em condições análogas à escravidão". OI!?!?!? Margarida? Mas ela era procurada pelo FBI justamente por ter mantido uma pessoa em sua casa em condições análogas à escravidão! Péssimo. Uma transmissão de centavos.
Acompanhei tudo durante a tarde por três ou quatro telas ao mesmo tempo. Vi quando os policias quebraram o vidro e entraram na casa, quando Margarida deu um mata-leão num policial, vi Luisa Mell pegar um cachorrinho e sair correndo. Teve tour pelo jardim detonado, teve take de lixo acumulado, caixa de abacate podre, populares gritando: "Ei, Margarida, vai tomar...". Vi Chico Felitti no meio da muvuca, gravando para o episódio extra que a série vai ter. E vi gente sem noção criticando o Chico. Absurdo.
Giulia avisa que a live já está com 11 milhões de views. Ela é muito simpática, passa batom ao vivo, apresenta o namorado e pede para que a sigam na rede vizinha também. Ela fica feliz porque agora já são 13 milhões de views, mas pouca gente está seguindo seu perfil. Alguém pergunta nos comentários o que Margarida fez. Pacientemente, ela responde. Giulia mostra toda a família, os amigos. Muita gente vem pegar carona na live. Já são 14 milhões. Mas ela quer ir embora, está cansada, em pé, sem comer, sem beber água. Mas como se abandona 27 mil pessoas simultâneas ao vivo e 15 milhões de curtidas?
A Band ficou horas mostrando a casa. Ao longo dos minutos foram contando a história do podcast para Datena, que mudou o discurso e tentou improvisar comentários históricos sobre escravidão. Outras emissoras transmitiam ao vivo no mesmo horário, já mais inteirados do assunto. A rua foi ficando lotada de gente. Produtores de conteúdo, curiosos, todos visitando as lives e vídeos uns dos outros. Até uma garota bacana, vizinha da casa, que tinha abandonado a cobertura, voltou a cobrir. Foi intenso demais. Eu sei porque moro a 400 metros da casa e passei o dia ouvindo helicópteros sobre minha cabeça.
Giulia diz na live que é atriz e está desempregada. Muita gente aproveita a audiência para fazer divulgações. Ela promete que vai parar às 9h20 da noite. E responde o nome do podcast mais de oito vezes. Diz que precisa de seguidores para ficar famosa e ser convidada pra farofa da Gkay. Os amigos riem. A parte boa é que Giulia ouviu todos os podcasts e, ao contrário de muitos profissionais de TV, sabe que estamos falando de um crime. De um casal de pessoas ricas e brancas de família tradicional paulistana que abusou, explorou e maltratou uma mulher preta e semianalfabeta —um caso de "escravidão moderna" que a TV transformou em "caso de mistério" da casa abandonada.
Giulia está firme na live, há mais de quatro horas. Ela diz que vai encerrar a transmissão, mas não consegue, porque o sucesso tem esse poder. Ela diz que virou um circo, que esqueceram que é um assunto sério. Ela está certa.
Sua bateria está acabando, está em 20%. Ela pede para que alguém veja quantos seguidores ela ganhou na rede vizinha, mas o amigo também está sem bateria. Giulia diz que talvez volte de madrugada. Não volta de madrugada, não. Larga essas metas de bater não-sei-quantos-mil. Você fez uma boa transmissão. Vai que o Uber chegou. Abandona essa mulher, abandona essa casa. Vai pra sua casa. Vai descansar.
E parabéns pela live de milhões, 18 milhões de curtidas.
PS - Giulia continuou a live no Uber e o motorista perguntou se a Luisa Mell ainda estava ali. Ele também estava o dia todo acompanhando A Mulher da Casa Abandonada.