'A Casa do Dragão': Paddy Considine foi de raízes difíceis ao trono de ferro
Com duas décadas de carreira, ator britânico se prepara para série de sucesso
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uma tarde muito ensolarada de junho, Paddy Considine acelerou seu carro por um subúrbio de classe operária na região de West Midlands, apontando para as sólidas tabernas, igrejas e casas populares que, juntas, formam o cenário de sua infância.
Lá estava o salão da igreja onde ele e seus amigos cantavam hinos quando não estavam "sendo expulsos por brigar". O bar no qual os homens de seu bairro tentavam beber até esquecer, a cada noite. A agência do correio, onde seu pai, sempre tempestuoso, "jogou uma lata de lixo pela vitrine" durante um de seus frequentes ataques de raiva, momento que o ator imortalizou em "Tiranossauro", um filme sombriamente bonito que Considine dirigiu em 2011.
Ele parou o carro diante de uma casa cinzenta e apontou para uma janela do andar de cima. Era a janela de seu quarto de infância, e ele falou sobre um menino desesperado por mostrar que tinha mais a oferecer ao mundo do que este poderia imaginar.
"Eu corria para casa depois da aula, colocava música e ficava na janela dançando ao som de Adam and the Ants, para que os pais me vissem e olhassem para cima", disse o ator. "Não era exibicionismo. Eu só queria ser visto". Considine me olhou com um sorriso, meio afável e meio intenso. "Porque há uma diferença, sabe?", ele acrescentou.
Ao longo de uma carreira de duas décadas no cinema, TV e em ocasionais peças de sucesso no teatro, Considine prosperou com base nessa diferença. Ele articulou desempenhos que demandam atenção, em parte porque renunciam à pirotecnia performática em favor de um senso palpável, às vezes inquietante, do real. O fato de ele até agora não tenha interpretado um papel visto como definitivo não o impediu de se tornar o ator favorito de muitos atores britânicos.
"Eu acredito nele, e só", disse Olivia Colman, que admira Considine há muito tempo. "Quando você olha nos olhos dele, percebe que ele está sentindo tudo, e que aquele sentimento é real".
O perfil de Considine é mais discreto nos Estados Unidos, mas isso talvez não dure: A partir de 21 de agosto, ele estará dançando na maior janela que ocupou até agora. É nesse dia que "A Casa do Dragão", uma prequela muito aguardada de "Game of Thrones", estreia na HBO. Melodrama familiar com toda a violência, sexo e desejo de poder que o público espera de um conto ambientado em Westeros, a série procura recapturar a magia que fez do original um fenômeno global, antes de enfrentar problemas devido a uma temporada final polarizadora, em 2019.
A história, baseada em "Fogo e Sangue", romance de George R.R. Martin, o criador da saga, se passa quase 200 anos antes dos acontecimentos de "Game of Thrones", e envolve uma batalha anterior pelo trono de ferro, que ameaça destroçar o clã Targaryen muito antes que sua combustível descendente Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) surja na trama da série original.
No coração de tudo isso está Considine, que estrela como o rei Viserys, governante cujas decisões e fragilidades desencadeiam grande parte do conflito e da carnificina que estão por vir.
À primeira vista, é uma escolha surpreendente de elenco. Depois de fazer sucesso como um bandido excêntrico no filme "A Room for Romeo Brass" (1999), Considine ganhou fama principalmente em dramas de baixo orçamento nos quais interpreta homens emocionalmente conflitados, sempre torturados pela intensidade de seus sentimentos: um pai imigrante de luto em "Terra de Sonhos", um ex-presidiário fanático religioso em "Meu Amor de Verão" e um veterano de guerra vingativo e homicida em "Dead Man's Shoes".
Embora ele tenha aparecido em grandes franquias ("O Ultimato Bourne") e em séries de grande orçamento ("The Outsider", baseada em um livro de Stephen King), e também em papéis surpreendentes (como a comédia policial "Chumbo Grosso"), um épico envolvendo dragões não pareceria ser o papel mais natural para Considine.
"Se você olhar para o conjunto de seu trabalho e o tipo de filmes que faz, ele não se presta necessariamente a uma grande franquia da HBO como essa", disse Matt Smith, que é parte do elenco de "A Casa do Dragão" como o belicoso irmão de Viserys, Daemon. "Mas eu acho que ele tem bom gosto, e que percebeu que o papel era realmente interessante".
Considine, 48, é um homem de multidões e paradoxos. Ator aclamado, ele mesmo assim luta com ataques de insegurança, e chegou a pensar em abandonar o filme "Chumbo Grosso" por sentir que seu desempenho era medíocre. A dureza dele é inconfundível, mas aquilo que o torna cativante é a sensibilidade que deixa transparecer.
Ryan Condal, um dos showrunners de "A Casa do Dragão", disse que Considine tinha emprestado a Viserys, um personagem relativamente passivo no roteiro, "um pouco do passado de classe operária de Paddy".
"O que Paddy deu a ele foi sua ferocidade, seu lado Targaryen", ele disse. Mas, como apontou Miguel Sapochnick, o outro showrunner da série, "a insegurança dele está sempre visível". Essa combinação bastou para conquistar o mais severo dos fãs de "Game of Thrones", Martin, que disse que o "Viserys de Considine supera o do livro".
"De vez em quando, um ator ou os roteiristas levam um personagem em uma direção um pouco diferente, e melhor", disse Martin. "E eu vejo aquilo e penso, droga, como eu queria tê-lo escrito dessa maneira".
Considine admite que se sentiu lisonjeado pelo convite para um papel central em um empreendimento tão grande, que quase certamente o exporá ao maior número de espectadores que ele já conquistou. Mas o que o atraiu foram as mesmas coisas que ele busca em todos os seus papéis, qualidades que seu passado e suas predisposições o ajudam a retratar com rara delicadeza. "Havia conflitos nele; havia dor", o ator disse. "Era um papel que me dava o que fazer".
Considine passa a maior parte de seu tempo afastado do show business. Ele, sua mulher, Shelley, com quem é casado há 20 anos, e os três filhos do casal moram em Burton-on-Trent, uma cidade a cerca de 180 quilômetros de Londres e próxima de onde o ator passou a infância. Isso o ajuda a evitar testes para papéis ou eventos em que precise se enturmar com figurões do setor, duas coisas que detesta por ser péssimo nelas, ele disse.
Embora Considine em geral seja imune aos clichês de Hollywood, ele certamente parecia confirmar alguns deles quando nos conhecemos. Sentado em um café em uma aldeia elegante perto de sua casa, ele estava todo de preto e usava óculos escuros, e passou os primeiros 20 minutos de nossa conversa falando sobre sua banda de rock, chamada Riding the Low. Considine sabia perfeitamente que impressão isso causa. "Eu sei... mais um ator que tem uma banda", ele disse.
Mas a verdade é que ele é músico desde antes de ser ator, e a banda não é um projeto que ele tenha criado por vaidade. Em junho, eles tocaram no festival de Glastonbury, e seu último disco inclui uma participação especial do herói musical de Considine, Robert Pollard, do grupo Guided by Voices.
Quanto aos óculos escuros, eles têm lentes especiais para tratar a síndrome de Irlen, um distúrbio que supostamente afeta a capacidade do cérebro para processar informações visuais. (Muitos médicos e cientistas encaram a doença com ceticismo, mas Considine e muita gente mais dizem que as lentes mudaram suas vidas). Ele é um sujeito engraçado e conversar com ele é fácil, mas Considine disse que seu problema, somado a uma variante leve da síndrome de Asperger que ele teve diagnosticada quando estava na casa dos 30 anos, lhe valeram uma reputação de desinteresse, no começo de sua carreira.
"Eu não era capaz de me concentrar, ou de focalizar meu olhar nas pessoas, e por isso desviava os olhos", ele disse. "Isso levou a um comportamento introspectivo, que me tornava um pouco inacessível". Mas ele está acostumado a ser mal compreendido —mesmo quando era garoto, em Winshill, a reputação de Considine o precedia. Mas não por conta dele.
Considine tem um irmão e quatro irmãs, e eles cresceram em um dos poucos lares de pais não divorciados em sua área. A mãe dele, Pauline, era naturalmente afetuosa e tomava conta das crianças do conjunto habitacional quando elas tinham problemas em casa. "Eu descia as escadas e encontrava um punk de dois metros de altura, com um cabelo moicano tingido de vermelho, dormindo no sofá", disse Considine.
Já seu seu pai era outro assunto. Irlandês, alcoólatra e dado a depressões e raiva, Martin Considine era conhecido como um sujeito que adorava uma briga e perdia a calma rapidamente; também gostava de ficar na cama até o meio da tarde, "assistindo a ‘Touro Indomável’ um monte de vezes", segundo Considine. "Cresci com muitos rótulos, quando era criança, por causa da reputação, principalmente da reputação do meu pai", ele disse.
Por algum tempo, ele pareceu disposto a confirmar esses rótulos, alienando seus professores por ser um aluno desinteressado e o engraçadinho da classe. Mas quando participou de uma produção escolar de "Grease", o momento foi transformador, de mais de uma maneira. Quando abriu a boca para cantar "Greased Lightning", no primeiro dia de ensaios, Considine descobriu uma voz robusta que não sabia que tinha. Na noite de estreia, todo mundo descobriu alguma coisa nele.
"Aquilo mudou a percepção da escola inteira a meu respeito", ele disse. "Os professores começaram a me perceber de maneira diferente, os alunos. E eu pensei que aquilo era muito poderoso".
Aos 16 anos, Considine começou a participar de um curso de teatro, mas "não aprendi muito, e desisti", ele disse. (O ator acabou se diplomando em fotografia.) Mas o curso lhe valeu uma amizade incidental com Shane Meadows, como ele oriundo dos Midlands e dotado de gostos semelhantes quanto a música e cinema. Alguns anos mais tarde, Meadows dirigiu Considine em "A Room for Romeo Brass", que valeu fama para os dois.
Depois vieram papéis de maior destaque, em filmes como "A Festa Nunca Termina", a história da gravadora Factory, e o melancólico "Terra de Sonhos". Seu trabalho seguinte foi "Dead Man’s Shoes", um filme violento e nervoso sobre um ex-soldado que persegue os homens que atormentaram seu irmão, e no qual Considine oferece uma interpretação assustadora mas bem fundamentada.
O filme continua a ser reverenciado no Reino Unido –quase todo mundo com quem falei sobre Considine o mencionou—, mas o ator está cansado de falar sobre o assunto, e há muito tempo. ("Parte de mim quer morrer quando as pessoas mencionam o filme", ele disse, mas isso é algo que ele aprendeu a aceitar.)
Aquele desempenho inesquecível permitiu indiretamente que Considine uma vez subvertesse as expectativas e mudasse as percepções. Ele conheceu Simon Pegg e Edgar Wright no circuito de premiações, na época de "Dead Man's Shoes" –os dois e seu filme, "Todo Mundo Quase Morto", se tornaram um dos grandes sucessos britânicos de 2004– e o contato valeu a Considine um papel como um detetive bobalhão em "Chumbo Grosso".
"Conhecer Paddy em pessoa foi uma revelação; ele era um cara incrivelmente caloroso e engraçado", escreveu Wright em uma mensagem de-mail. "Nós sabíamos que ele tinha uma presença cômica que ainda não havia sido totalmente aproveitada".
Foi na filmagem de "Chumbo Grosso" que Considine conheceu Colman, uma colega de elenco a quem ele oferece um dos papéis principais em seu primeiro longa como diretor, "Tiranossauro". O filme, que ele também roteirizou, conta uma história dolorida mas forte sobre um viúvo mal humorado que é amigo de uma mulher muito religiosa presa em um casamento abusivo.
Para Colman, então conhecida principalmente como humorista e atriz de TV, o papel doloroso que interpretou no filme gerou novas oportunidades dramáticas que acabaram por conduzi-la a um Oscar, pelo filme "A Favorita", de 2018. "Ele meio que mudou diretamente a trajetória da minha carreira", disse a atriz.
Para Considine, o filme ofereceu uma chance de revisitar seus anos de formação, por meio do veículo que permitiu que ele escapasse daquilo tudo. Em nosso passeio por Winshill, ele apontou para pontos de referência que inspiraram cenas no filme.
"Acho que ‘Tiranossauro’ foi só uma carta de amor e um pedido de desculpas aos meus pais", ele disse. "Era eu tentando dar sentido a algumas das coisas com as quais cresci". Considine começou a atuar muito antes de se tornar ator.
Um menino inseguro, intimidado por um lar caótico e pelas atitudes de outras famílias que "fechavam portas na minha cara" por conta dos pecados de seu pai, ele aprendeu a atuar com confiança e a ostentar segurança. "Tive de criar uma espécie de carapaça para poder me proteger", disse o ator.
Aquela armadura nunca desapareceu por completo - ele continua a vesti-la em noites de estreias e cerimônias de tapete vermelho. A insegurança tampouco se foi. Com o florescimento de sua carreira, ela se tornou tanto um ingrediente que transforma o trabalho em sofrimento, ocasionalmente, quanto uma força que permite que ele se aprofunde em suas interpretações e deslumbre os colegas.
"Na Inglaterra, acho que muitos atores sentem a mesma coisa com relação a Paddy", disse Smith. "Nós o temos em altíssima consideração". Tony Pitts ("All Creatures Great and Small"), amigo de Considine e seu colega em diversos trabalhos, o definiu como "o ator que a maioria dos atores quer ser".
Considine é seletivo quanto aos seus papéis —é difícil encontrar um trabalho ruim em sua página do IMDb. Os amigos dizem que isto deriva do fato de que atuar pode ter um profundo impacto psíquico sobre ele, o que faz com que precise se sentir muito investido em um papel antes de aceitá-lo.
"Paddy não é um cara que se limite a dizer suas falas", disse Pitts. "Eu já o vi chegar ao ponto de dizer que achava que não queria mais ser ator".
Wright define Considine como "Sr. Última Hora", porque foi só no último momento que ele foi convencido a não abandonar seus papéis em "Chumbo Grosso" e em um filme posterior, "Heróis de Ressaca". "O que seria ridículo, claro", disse Wright. "E só me fez pensar que ele é um cara que realmente se importa, talvez demais".
Considine passou por crise semelhante em "The Ferryman" (2017), peça de Jez Butterworth ambientada na época dos problemas políticos na Irlanda do Norte. Foi o primeiro trabalho de Considine no palco, e ele decidiu encará-lo como uma espécie de aprendizado de combate, porque se sentia limitado por sua falta de treinamento formal como ator, mesmo depois de trabalhar em numerosas séries e filmes. "Eu não tinha mais onde me esconder, e também estava perdendo o entusiasmo pela peça", ele disse.
Trabalhar no palco lhe pareceu aterrorizante. Sua dúvida chegou a um ponto de crise durante a temporada inicial da peça, no Royal Court Theater de Londres, e depois novamente quando "The Ferryman" se transferiu para a Broadway. Nas duas ocasiões, o diretor da peça, Sam Mendes, o ajudou a superar o problema. (Em sua crítica da versão da Broadway, o The New York Times definiu o desempenho de Considine como "soberbo, inabalável".) O ator agora diz que a peça "mudou o jogo" para ele, em termos de seu nível de conforto com relação à sua profissão. No entanto, esse conforto nem sempre esteve evidente, em "A Casa do Dragão".
Considine disse que ele baseou sua interpretação de Viserys, um homem fisicamente fragilizado, parcialmente em sua mãe, que passou por múltiplas amputações resultantes de diabetes antes de morrer de um ataque cardíaco. Colegas disseram que vê-lo habitar o papel às vezes chegava a lhes causar preocupação.
"Ele se vira do avesso em seu desempenho, e essa metamorfose às vezes é realmente dolorosa de ver", disse Olivia Cooke, que estrela na série como Alicent Hightower, uma mulher próxima a Viserys. "Nós conversamos sobre isso, e a única maneira de ele ter acesso à sua performance, às vezes, era visitar aquele lugar tão horrível e doloroso".
Sapochnik disse que quando Considine enfrenta dificuldades com o texto ou qualquer outra coisa, "sua reação padrão é a raiva". Dirigi-lo muitas vezes envolvia "ajudá-lo a trabalhar para resolver aquilo, e ter paciência, ou às vezes lhe dizer, companheiro, calma", ele explicou. "Mas também permitia ver como ele levava tudo aquilo para Viserys, depois".
Ao mesmo tempo, seus colegas de elenco, de velhos parceiros como Smith a recém-chegados como Emily Carey, que interpreta uma versão mais jovem de Alicent, elogiam Considine fortemente, como colega e colaborador divertido, caloroso e solidário. A pessoa com quem ele é mais duro é ele mesmo.
"Parece que estou sempre sofrendo, mas a verdade é que também me divirto fazendo essas coisas", disse Considine. "Só que, quando atuo, de alguma forma volto a ter esses desafios novamente diante de mim".
O que o faz seguir em frente são os vislumbres de transcendência. Considine mencionou um monólogo de fim de temporada que Viserys faz diante de sua família, que "passou perto do velho Hopkins", ou seja, Sir Anthony Hopkins, um dos atores que ele reverencia.
"Nos momentos em que você se dá totalmente ao papel, tudo aquilo que às vezes atrapalha - a autoconsciência, a mania de observar a si próprio, a crítica interior -, todas aquelas coisas horríveis simplesmente desaparecem. E é isso que procuro, em última análise", disse Considine
E na medida em que qualquer dessas coisas horríveis está ligada ao seu passado, Considine também está aprendendo a permitir que algumas delas desapareçam, à medida que suas realizações se acumulam e os anos transcorridos lhe oferecem distância e perspectiva".
"Aquele menino na janela, ele não precisa morrer, mas não pode continuar dominando sua vida", disse o ator. "É preciso explorar outras coisas, e ‘Game of Thrones’ é parte disso".
"Quem teria pensado que aquele menino acabaria interpretando um rei?", ele acrescentou. "Quem teria concebido que eu seria um rei, em qualquer lugar?"
Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci