'O Poder e a Lei': Protagonista cita perrengues com idioma para fazer série
Criado no México, Manuel Garcia-Rulfo faz seu 1º papel principal em série
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Manuel Garcia-Rulfo, 41, tinha acabado de conquistar seu primeiro papel principal em uma grande série de TV americana quando de repente percebeu um problema: Mickey Haller, o protagonista de "O Poder e a Lei", é advogado de defesa. Isso significa que ele teria discursos a fazer no tribunal.
"Tenho sotaque. O inglês não é meu primeiro idioma", disse Garcia-Rulfo, que nasceu e cresceu no México, enquanto bebericava chá, em uma conversa recente. "Nos primeiros dias, tive ataques de pânico, de verdade. Não tinha ideia de como conseguiria fazer o trabalho, em inglês, com a quantidade de diálogo que tinha para decorar. Nós estávamos gravando e a única coisa em que eu pensava era que não tinha capacidade de fazer aquilo. Estava a ponto de me demitir".
"Spoler alert": ele não deixou o projeto.
"O Poder e a Lei", que estreou na semana passada na Netflix, se baseia em um personagem criado pelo escritor Michael Connelly, também responsável pelos best-sellers policiais com o personagem Harry Bosch. Um astuto advogado de Los Angeles, Haller usa seus carros, sempre da marca Lincoln, como escritório –na série, ele se alterna entre um conversível clássico e um utilitário esportivo moderno— enquanto se desloca de um tribunal para outro. A temporada inicial da série se baseia quase integralmente em "O Veredicto", o segundo livro protagonizado pelo personagem (Bosch, que aparece como personagem secundário no livro, não faz parte da série da Netflix, porque é retratado em uma série concorrente do serviço de streaming Amazon Prime.)
Para os espectadores que se lembram de Matthew McConaughey no papel de Haller, na adaptação cinematográfica de "O Poder e a Lei", realizada em 2001, ver Garcia-Rulfo interpretando o personagem pode causar estranheza.
Mas na verdade a presença dele é um retorno: o protagonista dos romances tem pai americano e mãe mexicana, e a equipe de criação de "O Poder e a Lei" –que inclui criador da série, o prolífico roteirista e produtor David Kelley ("Big Little Lies", "Anatomia de Um Escândalo")– decidiu que se basearia em sua linhagem materna na hora de selecionar um ator para o papel.
"Nós queríamos ter o nosso Mickey Haller, e dar ao espectador um novo ângulo quanto ao personagem", disse Connelly, que é produtor executivo da série e estava na sala de roteiristas do programa, em uma conversa por vídeo. "Não seria exatamente uma decisão genial seguir aquilo que está no livro, mas é raro que Hollywood faça isso".
A oportunidade pareceu um novo começo também para Garcia-Rulfo. Um dia depois de terminar de dublar os diálogos de seu personagem na versão em espanhol da série –uma capacidade valiosa para uma empresa dotada de ambições mundiais como a Netflix—, o ator, alto e esbelto, chegou a um café em Studio City, o bairro em que ele vive em Los Angeles, com as covinhas de seu rosto encobertas por uma barba rala e usando um boné. Garcia-Rulfo parecia ao mesmo tempo espantado e entusiástico, talvez até um pouco descrente, com a virada em sua carreira.
Não que ele estivesse desocupado antes da pandemia: o ator teve papéis em grandes projetos em língua inglesa como "Sete Homens e Um Destino", "Assassinato no Expresso do Oriente", "As Viúvas" e "Esquadrão 6". Mas quando a Covid-19 chegou, ele decidiu deixar sua casa em Los Angeles e buscar abrigo no México, onde cresceu em uma fazenda em Guadalajara, em companhia de um avô que amava Charles Chaplin e o comediante mexicano Cantinflas.
"Nós comíamos pipoca e ele projetava os filmes que fez quando meu pai e tias eram crianças", disse o ator sobre os filmes caseiros de seu avô. "Minhas tias começaram a fazer filmes, também –comigo como personagem principal, quase sempre– e acho que minha obsessão pelo cinema apareceu ali".
Aos 13 anos, os pais do jovem Garcia-Rulfo o enviaram a Vermont para passar um ano e melhorar seu inglês (aprender a esquiar foi um bônus inesperado). Porque o Stella Adler Studio of Acting, em Nova York, e uma escola de palhaços na França –"no México, até mesmo atores que não são palhaços estudaram lá", ele disse– eram caras demais, ele estudou atuação em Los Angeles e no México. Sua carreira decolou rapidamente, depois disso, mesmo que os papéis que conseguia nos Estados Unidos costumassem ser repetitivos: assassino de aluguel aqui, fora da lei acolá, contrabandista como alternativa.
Por isso, quando foi convidado a fazer um teste para o papel principal de "O Poder e a Lei", Garcia-Rulfo aproveitou a oportunidade o mais rápido que pôde e enviou um vídeo.
"Fiquei muito satisfeito por os showrunners, os produtores e a Netflix terem decidido fazer essa aposta", ele disse, acrescentando que estava muito feliz por interpretar um protagonista que não é traficante de drogas. (A maré pode ter virado: poucos dias antes de nossa conversa, ele tinha acabado de filmar "A Man Called Otto", um drama dirigido por Tom Hanks, no qual ele interpreta um profissional de informática, um cara que o ator descreve como "simpático, divertido e desajeitado".)
Garcia-Rulfo conquistou o papel de Mickey, seu primeiro protagonista em uma série de TV, depois de um processo de seleção de elenco realizado inteiramente online —mais um motivo para que ele se preocupasse. "Você se sente pressionado porque fica pensando que, quando eles o virem em pessoa, de repente podem descobrir que não, não era aquilo que esperavam".
Neve Campbell, que interpreta Maggie, a primeira mulher de Haller, na série disse que entrou em contato com ele e que os dois saíram para uma caminhada por uma trilha para se conhecerem, um pouco antes de o trabalho começar, no ano passado.
"Ele estava compreensivelmente preocupado por assumir o papel do advogado do Lincoln trabalhando em um idioma que não é o seu de origem", disse a atriz. "E eu disse que, olha, a televisão é algo que você faz um dia por vez" acrescentou Campbell. "E haverá pessoas para ajudá-lo".
Mesmo assim, Garcia-Rulfo passou por alguns momentos de preocupação, no começo. "A primeira cena que filmamos juntos era para o primeiro episódio", disse Campbell, rindo. "E ele chegou dirigindo o carro, mas esqueceu de puxar o freio de mão, e o carro saiu rolando pela rua". (Haller tem um motorista, um antigo cliente interpretado por Jazz Raycole, e por isso Garcia-Rulfo, que na vida real prefere andar ou usar uma bicicleta, não precisou dirigir muito na série.)
A dislexia do ator agravou sua preocupação. Para decorar suas falas, ele voltou a usar um método que lhe foi ensinado por sua avó, que era artista.
"Comprei uma placa, coloquei no meu apartamento e –veja só que loucura– monto um mapa mental, com imagens, desenhos", ele disse. "Fazia isso para cada cena. Se a cena envolvia uma arma, eu desenhava a arma. Para mim, é mais fácil aprender desse jeito".
Mas decorar as falas era apenas parte do trabalho, no entanto. O produtor executivo e showrunner da série, Ted Humphrey ("The Good Wife"), se lembra de que Garcia-Rulfo tinha muitas dúvidas, no set.
"Às vezes ele fazia perguntas sobre frases ou falas específicas, mas o mais frequente é que as perguntas fossem questões mais profundas sobre o personagem: como é que um advogado de defesa real pensaria a respeito de tal coisa, como ele abordaria tal outra coisa?", revelou Humphrey em um email.
"Ele é um homem muito instintivo, o que acho ótimo e necessário para um ator, mas também existe uma dose considerável de reflexão por trás da maneira pela qual ele aborda as coisas", acrescentou o produtor.
O ator também ajudou a embasar a visão de Haller que a série apresentaria. "No roteiro, ele estaria comendo um hambúrguer, mas eu sugeria que seria melhor explorar o lado mexicano do personagem, e ele comer tacos ou burritos", disse Garcia-Rulfo. "Em, dado momento, ele pede um bourbon, e minha primeira ideia é que deveria ser uma tequila. Por que não? É sua herança".
E assim que pegou o ritmo do trabalho, Garcia-Rulfo conseguiu até relaxar um pouco. "Eu realmente curti", disse o ator, rindo. "Ele passa por cima de todo mundo no tribunal. A sensação é ótima".
Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci