'Apollo 10 e meio' estreia na Netflix com parceria de 30 anos nos bastidores
Diretor Richard Linklater e editora Sandra Adair acumulam 20 trabalhos
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Em "Apollo 10 e Meio: Uma Aventura Espacial", comédia de animação da Netflix que passa na década de 1960 no subúrbio de Houston, uma horda de pré-adolescentes ataca uma barraquinha de picolés, em um esforço para escapar do calor do Texas. Um a um, os adolescentes dão a primeira lambida deliciada em seus sorvetes, mas imediatamente descobrem que os picolés ficaram por tempo demais no congelador, e que suas línguas não desgrudam. O pânico começa a se espalhar, e a molecada se remexe freneticamente até que.... rrrrp! Um menino ousado termina com a língua ensanguentada.
A cena, com sua combinação de humor e horror, é parte das lembranças do diretor e roteirista Richard Linklater, 61. Mas o timing impecável é obra de Sandra Adair, 69, que edita todos os filmes de Linklater há décadas.
"Apollo 10 e Meio: Uma Aventura Espacial" é o 20º longa de Linklater, que foi editado por Adair. E o lançamento marca o 30º aniversário de uma das colaborações mais duradouras na história do cinema dos Estados Unidos, produzindo obras que receberam imensos elogios dos críticos e múltiplas indicações ao Oscar.
Adair não é a única profissional da área técnica que colabora com Linklater há muito tempo. O cineasta já realizou 11 longas-metragens com o diretor assistente Vincent Palmo Jr., nove com a figurinista Kari Perkins e sete com o diretor de fotografia Shane Kelly, entre muitos outros colaboradores.
Mas Linklater dividiu mais créditos com Adair do que com qualquer outro colega, um fato que ele atribuiu à compreensão quase sobrenatural que ela demonstra quanto às preferências estéticas do cineasta.
"No começo, eu dizia a ela que começaríamos pela tomada de plano geral, e depois iríamos para aquilo, e cortaríamos com aquilo mais", disse Linklater em uma entrevista por Zoom. "Mas em algum momento ao longo do caminho ela me disse que eu não precisava lhe dar aquelas instruções, e que ela sabia exatamente o que eu estava pensando. E minha reação foi a de que nossa, isso é muito conveniente".
Adair começou a trabalhar com Linklater quando ela e o marido, o cineasta Dwight Adair, se mudaram para Austin, Texas, em 1991. Natural de Las Vegas, Sandra Adair tinha se transferido para Los Angeles no começo da década de 1970 para estagiar com seu irmão, o editor de cinema Robert Estrin. Lá, ela começou a ganhar experiência "pelo porão", trabalhando em filmes como "Confissões Verdadeiras" e "Corações Desertos", aprendendo a profissão e descobrindo como sobreviver às disputas políticas em Hollywood.
Em 1992, um ano depois que ela se mudou para Austin, um colega a informou de que um diretor em ascensão estava procurando por um editor para um novo projeto que ele estava desenvolvendo para a Paramount Pictures. Ávida por trabalho, Adair enviou uma carta manuscrita a Linklater oferecendo seus serviços, e logo foi contratada para editar o filme que se tornaria "Jovens, Loucos e Rebeldes". Foi o primeiro longa de Hollywood pelo qual Adair levou crédito como editora principal.
"O roteiro era tão vivo que redespertou minha paixão pela edição", disse Adair. "Eu logo me enquadrei à ideia e comecei a compreender o que Rick estava tentando fazer".
Embora a produção do filme tenha sido complicada, o resultado se tornou um sucesso cult. Mas foi só depois de trabalhar com Linklater em seu filme seguinte, "Antes do Amanhecer", que o diretor e a editora "entraram em sincronia totalmente", disse Adair.
O jornalista e cineasta Louis Black, que dirigiu o documentário "Richard Linklater: Dream Is Destiny", com Karen Bernstein, expressou sua opinião, via Zoom, sobre a colaboração entre Linklater e Adair. "Eles amam trabalhar um com o outro porque estão em sintonia", ele disse.
Estar no mesmo comprimento de onda permitiu que os dois mantivessem uma coerência entre projetos que abarcam uma vasta gama de temas e estilos, de um ruidoso musical pop ("Escola de Rock") à ficção científica sombria ("O Homem Duplo"). "As sensibilidades deles na verdade são parecidas demais", disse Black. "No mundo deles, o mimético se torna espetacular".
O triunfo conjunto mais conhecido de Linklater e Adair só aconteceu em 2014, quando os dois foram indicados ao Oscar por "Boyhood – Da Infância à Juventude", um drama familiar sóbrio que eles filmaram em segredo durante 12 anos.
"Obviamente foi um filme que nós fomos escrevendo enquanto filmávamos, mas também foi editado enquanto estava sendo filmado", disse Linklater. "E assim nós conversávamos muito sobre o que o filme tinha e sobre o que faltava a ele".
A natureza incomum daquela produção permitiu que Adair influenciasse o produto final de uma maneira que poucos editores fazem. "Ela interferiu como criadora de histórias. ‘Em minha opinião, ele precisa ter seu coração partido em algum momento’, ela disse. Não é comum que um editor interfira dessa maneira em um filme", disse o cineasta.
Quando as filmagens terminaram, Adair recebeu crédito também como coprodutora. "Foi quase inacreditável que tenhamos conseguido fazer aquilo", ela disse. "Eu experimentei física e mentalmente o amadurecimento daquela família, vezes sem conta. É difícil descrever o efeito que aquele filme teve sobre mim e sobre muitas outras pessoas".
A mais recente colaboração dos dois uma vez mais rejeita qualquer categorização fácil de gênero. Uma mistura de cenas "live action", animações bidimensionais e "rotoscoping" (o uso de cenas com atores reais sobre as quais animadores baseiam seus desenhos), "Apollo 10 e Meio: Uma Aventura Espacial" traz Milo Coy como Stan, que representa um menino parecido com Linklater, cujo pai tem uma posição burocrática na Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (Nasa) no pico da corrida espacial. O filme é parte viagem nostálgica (lembranças de "Bonanza", "A Feiticeira" e de tortas Frito), em parte fantasia (duas agências do governo oferecem a Stan o lugar que deveria ter cabido a Neil Armstrong na primeira missão lunar).
Tommy Pallotta, um dos produtores do filme e seu diretor de animação, disse que a "amizade e respeito" que existem entre Linklater e Adair era essencial para que a história atravessasse as partes mais fantasiosas da jornada de Stan sem perder o contato com as profundas lembranças pessoais do diretor.
"Sandra está totalmente imersa nisso", ele disse. "Integrar material diferente como esse é algo que depende do processo de edição. É difícil dizer que percentagem é o quê".
Linklater e Adair já estão trabalhando em seu novo projeto, uma adaptação de "Merrily We Roll Along", um musical de Stephen Sondheim, que começou a ser filmada em 2018 e cuja produção deve durar mais 18 anos. Adair disse que, embora ela ainda não tenha visto qualquer cena, Linklater insistiu em que trabalhe no filme, uma tarefa que estenderá a parceria única entre ele até 2039, pelo menos.
"Isso é uma coisa fundamental na vida: sentir que você está engajado em alguma coisa que realmente o interessa", disse Linklater. "Estamos nessa por conta dessa coisa da trupe de artistas, e o mais recompensador em termos criativos são os relacionamentos que você forma. Nós mergulhamos nisso, e continuamos mergulhados".
Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci