Cinema e Séries
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Como trilha de 'Duna' teve instrumento inventado e sons de molas e serras

Hans Zimmer diz que a filha teve estresse pós-traumático por barulhos

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Darryn King

Quando o compositor Hans Zimmer foi procurado para compor a trilha sonora do filme "Duna", a nova adaptação do romance épico de ficção científica de Frank Herbert, ele tinha certeza de uma coisa: a música não seria nada parecida com a de "Star Wars". Musicalmente, os filmes da série se basearam em influências que variam, de Holst e Stravinsky a partituras clássicas de cinema das décadas de 1930 e 1940. E mesmo a canção animadinha interpretada pelas criaturas de olhos esbugalhados na Cantina foi inspirada por Benny Goodman.

Já para "Duna", em contraste, Zimmer desejava conjurar sons que jamais tivessem sido ouvidos. "Senti que existia uma liberdade em deixar de lado as orquestras ocidentais", ele disse, em uma conversa recente, falando no escritório da Warner Bros. no Hudson Yards, em Manhattan. "Posso passar meus dias inventando sons".

A trilha sonora resultante talvez seja uma das mais heterodoxas e provocantes da carreira de Zimmer. Além de sintetizadores, é possível ouvir barulhos de metal sendo raspado, flautas de bambu indianas, apitos irlandeses, uma frase vibratória de tambor que o compositor define como "um anti-groove", rugidos sísmicos de guitarras distorcidas, uma trompa de guerra que na verdade é um violoncelo, e formas de canto que desafiam a notação musical ocidental –para mencionar apenas alguns dos elementos díspares que ele incorporou.

A partitura combina o som gigantesco e pulsante dos trabalhos mais conhecidos de Zimmer na década passada a um espírito de experimentação sonora radical. A estranheza do resultado se enquadra com perfeição à saga de uma civilização intergaláctica futurista cujos integrantes são perseguidos por gigantescos vermes de areia e reverenciam uma substância alucinógena conhecida como "especiaria".

No entanto, nenhum alucinógeno foi consumido durante o processo de composição. "Estranhamente, sou o único cara que vem do rock e nunca usou drogas", disse Zimmer, com um sorriso largo e juvenil que parece incongruente com seus 64 anos, especialmente quando ele fala sobre algumas de suas empreitadas musicais mais exóticas.

Depois de passar alguns anos tocando em uma banda chamada Buggles, o compositor nascido na Alemanha e radicado na Califórnia ganhou fama no cinema com trilhas para filmes como "Rain Man", "O Rei Leão" e "Além da Linha Vermelha". Mais recentemente, ele criou a partitura de "007 – Sem Tempo para Morrer", o mais recente filme de James Bond. Mas para muita gente, o que talvez o torne mais conhecido é o seu trabalho em filmes de Christopher Nolan, entre os quais "Interestelar", "A Origem" e a trilogia do diretor com o personagem Batman.

Zimmer recusou um convite para trabalhar em "Tenet", o mais recente filme de Nolan, para concentrar suas energias em "Duna". Zimmer afirmou que, de certa maneira, ele estava trabalhando nessa trilha sonora desde que leu o primeiro romance da série de Herbert, quando adolescente. "Faz quase 50 anos que penso sobre ‘Duna’", ele disse. "E por isso esse foi um trabalho que encarei coma maior seriedade".

Ele preferiu não assistir à adaptação do livro para o cinema em 1984 –dirigida por David Lynch e com música da banda Toto—, a fim de preservar a visão que tinha para o filme em sua cabeça. Como parte de seu processo criativo, Zimmer passou uma semana em Utah para se sintonizar com o som do deserto. "Eu queria ouvir o rugido do vento", ele disse.

A trilha sonora de Zimmer tem papel tão importante em "Duna" que às vezes o filme parece uma espécie de documentário extraterrestre grandioso sobre a natureza.

O diretor Denis Villeneuve, que também trabalhou com Zimmer em "Blade Runner 2049", disse que "’Duna’ é o meu filme mais musical. A trilha é quase onipresente, e participa diretamente da narrativa do filme. É espiritual".

Zimmer na verdade compôs mais música do que o filme comportaria. Além da trilha sonora original, há "The Dune Sketchbook (Music From the Soundtrack)", que abarca explorações sônicas mais extensas, e "The Art and Soul of Dune", um disco que acompanha o livro homônimo sobre os bastidores da produção. (Ele compôs ainda mais música, para uma possível continuação.)

O nome de Zimmer está nos créditos do filme e nas gravações da trilha sonora, mas ele prefere se ver como integrante de uma banda incomum que inclui um grupo seleto de compositores e colaboradores. "Se alguém tem uma ótima ideia, sou o primeiro a dizer que sim, vamos começar uma grande aventura".

O compositor David Fleming, que recebeu crédito por "música adicional" como colaborador na criação da trilha, disse que "criamos e colaboramos quanto a ideias, na medida em que os realizadores dos filmes nos permitem, antes de por fim começarmos a aplicar essas ideias aos filmes". Ele descreveu "reuniões de banda" que tomam a forma de um fórum aberto, acrescentando que "você pode contar com Hans, acima de todos, para levar uma ideia audaciosa um passo além do que você imaginaria possível, e aí tentar ir ainda mais adiante".

Guthrie Govan, guitarrista slide que Zimmer descobriu no YouTube, descreveu o processo. "Ele delineia o resultado desejado, em lugar de prescrever o caminho a tomar para chegar lá. O tipo de indicação que ele fornece é ‘isso precisa ter um som de areia’".

Instrumentos inteiramente novos terminaram por ser criados para a trilha. (Já que as restrições geradas pela pandemia ainda estavam em vigor, muitos dos elementos da trilha foram gravados separadamente, em partes diferentes do planeta.) Pedro Eustache, que toca diversos instrumentos de sopro, construiu uma trompa de 21 metros e um "duduk contrabaixo", uma versão superdimensionada de um instrumento de sopro armênio.

Chas Smith, trabalhando isolado em seu galpão em uma área rural da Califórnia, criou diversos instrumentos metálicos, um dos quais feito com molas e serras e outro de Inconel 718, liga metálica usada na produção de tanques de armazenagem criogênica e nos motores-foguete das espaçonaves SpaceX. No filme, as texturas tonais complexas e retumbantes de Smith acompanham cenas que mostram a areia do deserto e a especiaria carregada pelo vento.

Um dos maiores e mais surpreendentes momentos musicais de "Duna" acontece durante uma chegada cerimoniosa ao planeta desértico Arrakis. A cena é anunciada com o rugido portentoso de gaitas de fole, um assalto sonoro gerado por um batalhão de 30 gaitistas que gravaram sua participação em uma antiga igreja na Escócia. Protetores para os ouvidos tiveram de ser usados. O volume atingiu os 130 decibéis, o equivalente a uma sirene de ataque aéreo.

A barulheira toda tomava completamente a casa de Zimmer nas muitas madrugadas que ele passou trabalhando na trilha. "Minha filha me disse um dia desses que ela sofre de estresse pós-traumático causado por gaitas de fole", ele afirmou.

Talvez a presença mais mística na trilha seja a de um coral de vozes femininas que canta, sussurra e ora em um idioma inventado. "A verdadeira força propulsora do romance sempre foram as mulheres", disse Zimmer. "São as mulheres que determinam o destino de todos".

Uma voz marcante irrompe como um grito de guerra, um som ancestral, com sílabas unidas por melismas em um ritmo difícil de determinar. Os vocais foram gravados em um armário em Brooklyn, o estúdio improvisado da terapeuta vocal e cantora Loire Cotler. Sentada no piso do armário, com roupas penduradas por sobre sua cabeça e o laptop apoiado em uma caixa de papelão, Cotler cantava por horas a cada dia, emergindo só quando a noite já tinha caído. "Aquele espaço se tornou um laboratório musical sagrado", ela disse.

Estilisticamente, Cotler se baseou em numerosas fontes, do "niggun" (canto sem palavras) judaico aos lamentos celtas e aos cânticos multitonais de Tuva. Mesmo o som do saxofone de John Coltrane foi uma influência, ela disse.

"Quando você começa a criar híbridos entre influências e técnicas tão distintas, sons interessantes surgem", ela disse. "É uma técnica vocal conhecida como ‘Hans Zimmer’".

Villeneuve conquistou manchetes ao insistir em que "Duna" é uma experiência sensorial múltipla que exige ser vista em uma tela grande no cinema. Da mesma forma, a trilha sonora de Zimmer exige ser experimentada por meio de um sistema de som de alta qualidade em uma sala de cinema.

"Eu componho em sistema surround –mas não estou falando só da tela grande e do som grande", disse Zimmer. "O que importa é compartilhar alguma coisa. Compartilhar sonhos".

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci