Cinema e Séries
Descrição de chapéu The New York Times Cinema

Série 'Run the World' é uma ode a 'amizades invejáveis' e ao Harlem negro

Nova produção do Starz exibe mulheres 'entrando na vida adulta'

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Salamishah Tillet

The New York Times

Por quase três décadas, Yvette Lee Bowser criou, produziu e escreveu programas de TV que retratam mulheres que têm, em suas palavras, “amizades femininas invejáveis”.

Esses relacionamentos foram especialmente importantes em “Living Single”, uma sitcom que ela realizou na década de 1990 e tinha por centro os elos entre quatro mulheres interpretadas por Queen Latifah, Erika Alexander, Kim Fields e Kim Coles.

“Living Single” fez de Bowser a primeira produtora negra a criar uma série de horário nobre nos Estados Unidos. Mas os mesmos sentimentos estiveram presentes em outras séries que ela realizou desde então, como “For Your Love” e “Half and Half”.

“Run the World”, nova série do serviço de streaming Starz da qual Bowser é showrunner, também acompanha quatro amigas, retratando as carreiras, vidas amorosas e elos entre quatro mulheres negras de 30 e poucos anos que vivem no Harlem: Ella (Andrea Bordeaux), Renee (Bresha Webb), Sondi (Corbin Reid) e Whitney (Amber Stevens West).

No entanto, “Run the World” é menos uma sucessora direta de “Living Single” do que parte da evolução continuada de como as mulheres, especialmente as mulheres negras, são retratadas na televisão. Da mesma forma que em séries como “Scandal”, “Insecure” e outras, as mulheres de “Run the World” são ambiciosas, abertamente sexuais e emocionalmente nuançadas; sua ousadia e autoconfiança vêm acompanhadas por momentos de incerteza e de dúvida pessoal.

Criada por Leigh Davenport, roteirista e ex-executiva de mídia, com base em suas experiências como uma jovem negra tentando construir uma vida em Nova York, “Run the World” é uma combinação entre as experiências de Davenport e o talento de Bowser para retratar amizades femininas na televisão.

Embora a série seja divertida acima de tudo, também trata de questões mais profundas e nuançadas, como dinâmicas de gênero e raça, o desequilíbrio de poder nos relacionamentos, e até o aburguesamento de certas áreas da cidade, pintando um retrato complexo do Harlem negro. Mesmo assim, os elos da amizade feminina continuam a ser o principal refúgio das personagens.

“As mulheres merecem contar suas histórias no tempo delas, e essa é a história de uma nova geração”, disse Bowser. “Eu queria garantir que a união delas tivesse momentos significativos, maravilhosos e invejáveis de irmandade, porque isso, ao longo das décadas, se tornou minha marca”.

“Run the World” é perceptiva sobre o fato de que amigos podem estar em espaços diferentes em suas vidas, ainda que tenham idades parecidas, e cada uma das personagens exemplifica diferentes variedades da ansiedade e das realizações das pessoas da casa dos 30 e poucos anos.

Whitney é perfeccionista e gosta de agradar, e tem um noivo charmoso; ela parece ter conquistado tudo que desejava, mas ainda assim se sente insegura. A sensata Sondi está fazendo doutorado e dando os primeiros e incertos passos para se tornar madrasta da filha de seu parceiro.

O casamento de Renee, franca e batalhadora, está desabando. Ella, jornalista de entretenimento, está começando de novo em um emprego humilde, depois que sua grande oportunidade de sucesso provou ser muito menos satisfatória do que ela esperava.

Yvette Lee Bowser na premiere de "Run The World" - Emma McIntyre - 13.mai.21/Getty Images/AFP

É um período perigoso e fascinante da vida, disse Davenport, porque é quando muitas pessoas começam a “dar seus primeiros passos como verdadeiros adultos”. “Você começa a avaliar mais as coisas”, ela disse. “É esse o emprego que quero, a esta altura de minha vida? Estou com o homem certo?”.

Tendo trabalhado por mais de uma década como jornalista no ramo de entretenimento, antes de decidir se dedicar aos roteiros em período integral, Davenport se sente especialmente próxima a Ella –“Ella” era seu pseudônimo no blog que escrevia sobre sua vida em Nova York.

Embora ela inicialmente tenha concebido a história de Ella como ponto focal, Bowser teve a ideia de expandir “Run the World” para um trabalho de elenco. “Para mim, havia muito valor em destacar as quatro personagens, e dar peso igual a todas elas, para que tivéssemos aquele sentimento tribal maravilhoso”, disse Bowser.

A irmandade retratada na série é contextualizada, nas experiências diversas, mas específicas das mulheres negras. O tom positivo e divertido da série, com muitas cenas em casas noturnas e números de dança bem coreografados, é muito atraente.

Mas a narrativa acontece claramente do ponto de vista das mulheres negras, enquanto as amigas examinam, continuamente seus relacionamentos românticos, pela lente do amor negro, e fazem referência ao fato de que suas interações sociais às vezes parecem torná-las invisíveis para terceiros.

“Há muita discussão e debate sobre raça e suas dinâmicas, e sobre feminismo e política”, disse Davenport. A especificidade das experiências das mulheres negras responde por boa parte dos atrativos da série, na opinião de Stevens West, que interpreta Whitney e apontou que, em termos de representação, a apresentação de retratos autênticos é que permite compreensão genuína.

“Quanto mais você mostra as nuanças de toda cultura, e tem pessoas de tipos diferentes, mais empatia sentimos uns pelos outros”, disse Stevens West. Ela acrescentou que a maneira pela qual a série retrata não só os elos entre as amigas, como a importância desses elos, parecia muito fiel à realidade.

“Nós dependemos de nossas amigas também para a saúde mental”, ela afirmou. “Culturalmente, dentro da comunidade negra, é exatamente assim que as mulheres apoiam umas às outras”.

Bordeaux, que interpreta Ella, tem sentimentos parecidos. “Run the World” ilustra tanto o conflito quanto o conforto que podem resultar da dessemelhança, em termos de status, acesso e percepção na hierarquia social, nas vidas de um grupo de amigas próximas, ela disse.

“Todas as mulheres estão na mesma jornada, mas em estágios diferentes da jornada”, disse Bordeaux. “O que realmente salta aos olhos é a ideia de que você sabe quem você é. E a forma pela qual uma pessoa se vê é em última análise a coisa mais importante”.

Bordeaux vê muito da história de sua carreira refletida no problema de Ella, o de ter de recomeçar do zero a sua carreira no setor que escolheu.

“Tive uma experiência semelhante de sentir que tinha conseguido minha grande chance, meu emprego dos sonhos, e ver tudo aquilo desabar, e perceber que o trabalho não era aquilo que eu esperava”, ela disse. “Isso abala sua confiança –coloca em questão sua ideia de quem você é, e é realmente necessário começar de novo”.

Embora a série reflita a dor que surge quando “outras pessoas não a veem da maneira como você mesma se vê”, disse Bordeaux, ela espera que as histórias das mulheres também sirvam para lembrar os espectadores de que existe beleza nas incertezas da vida. “O desconhecido é onde reside a infinita possibilidade”, ela afirmou.

No caso de “Run the World”, as possibilidades de cada personagem estão situadas nos limites da cidade de Nova York, e na maioria dos casos, no Harlem. Para Davenport, que viveu por 11 anos em Nova York antes de se mudar para Los Angeles em 2016, o Harlem é mais do que um lar.

“Quando as pessoas falam de nossos bairros, sempre falam do que eles têm de problemático, e não sobre a sensação de comunidade, amor e alegria que existe neles”, ela disse. “Para mim, o Harlem é isso”.

Mas a série encara com realismo a realidade contemporânea e conflituosa do Harlem, como ao mesmo tempo um marco cultural para os negros e uma área urbana sofrendo aburguesamento. Davenport disse que era importante mostrar a diversidade do Harlem negro e a forma pela qual africanos e os americanos que descendem de africanos continuam a compartilhar espaços e culturas.

Com o avanço da temporada, episódios mostram uma noitada no Shrine, onde as personagens dançam ao som de afropop. Há também uma busca pelo Aso-Oke perfeito (um tecido produzido a mão originário da cultura ioruba, do oeste da África), no Malcolm Shabazz Harlem Market, como parte dos preparativos para um casamento que seguirá o ritual ioruba.

Em “Run the World” o Harlem não representa só o pano de fundo cênico para a vida de cidade grande. A relação entre as mulheres e o bairro –um santuário de irmandade e o local de seus sonhos, desastres, erros e esperanças– é tão invejável quanto a relação que as personagens têm entre elas,

Para Bowser, criar essa visão do Harlem serviu tanto para honrar o significado cultural e comunitário da área para as pessoas negras quanto para honrar o amor de Davenport pelo bairro. “Eu queria garantir que isso servisse como estrela-guia, e que capturássemos todas as camadas possíveis –é uma comunidade, um clima”, disse Bowser.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci