Luca Guadagnino diz que se inspirou na infância de Amy Adams para 'We Are Who We Are'
Diretor de 'Me Chame Pelo Seu Nome' contou por que aceitou 1º projeto para TV
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Luca Guadagnino, 49, encerra nesta segunda-feira (2) sua primeira empreitada para a televisão. A minissérie "We Are Who We Are" mostrará os desfechos das tramas de Fraser Wilson (Jack Dylan Grazer), Caitlin (Jordan Kristine Seamón) e do casal Sarah (Chloë Sevigny) e Maggie (Alice Braga), entre outros.
O diretor, cujo nome virou mainstream após o sucesso de "Me Chame Pelo Seu Nome" (2017), conta em depoimento exclusivo cedido pela HBO por que aceitou o convite para comandar a produção em formato digital —há anos ele só filmava em película— e também fala sobre seu processo criativo e influências.
"Tudo começou em janeiro de 2017, logo após o sucesso de 'Me Chame Pelo Seu Nome' no Festival de Cinema de Sundance", afirma. "O produtor executivo Lorenzo Mieli me perguntou se eu estaria interessado em fazer uma série sobre a fluidez de gênero, ambientada em um típico subúrbio norte-americano."
O cineasta diz que, em geral, não se sente atraído por essa narrativa, mas se interessou pela ideia de retratar uma comunidade norte-americana por que poderia explorar coisas que ainda não havia feito. "Por algum motivo a proposta me fez pensar na infância de Amy Adams", revela. "Há anos a atriz tinha me contado que era filha de um soldado do exército dos Estados Unidos, e que tinha nascido e passado a infância no complexo militar de Ederle, em Vicenza."
"Essa lembrança se transformou, de alguma maneira, em uma fonte de inspiração que me levou a pensar: o que aconteceria se em vez de representar os subúrbios norte-americanos, muitas vezes estereotipados pelo cinema independente, retratássemos uma comunidade muito específica, como um grupo de militares servindo no exterior com as suas famílias?", relata. "Um microcosmos que recria seu país fora das fronteiras, por exemplo, na Itália..."
Foi a partir daí que ele começou a trabalhar com os roteiristas Francesca Manieri e Paolo Giordano, que já estavam tocando o projeto. "A minha contribuição para o desenvolvimento do roteiro foi principalmente dizer: não nos limitemos à ação e à trama, foquemos nos personagens, tratemos de nos concentrar o máximo possível no comportamento deles", explica.
Sua inspiração, diz, foi o diretor francês Maurice Pialat (1925-2003), com filmes como "Aos Nossos Amores" (1983) e "Sob o Sol de Satã" (1987). Este último venceu a Palma de Ouro em Cannes, mas foi vaiado pelo público. "Gosto de pensar que sua visão desiludida do sagrado ou sua capacidade de fazer isso emergir em um mundo de corrupção influiu em partes da narrativa desta história de maturidade, especialmente na construção de alguns dos personagens, como Danny (Spence Moore II)", afirma.
Ele cita outros cineastas que admira, como Chantal Akerman e Bernardo Bertolucci, e explica que não tenta refazer, imitar ou se apropriar das obras deles. "Meu desejo de homenagear um autor nasce de um encontro emocional, intelectual e moral", conta. "Depois de devorar seus filmes e entrevistas, a minha homenagem é uma incitação à reflexão em um debate ideal com os mestres que sinto que posso interpretar graças ao meu conhecimento do sistema intelectual deles."
Guadagnino, que diz chamar a minissérie de "filme em oito atos", afirma que foi feita uma extensa pesquisa sobre o mundo das bases militares e, a partir daí, a galeria de personagens começou a ganhar formas mais claras.
Ele afirma ter se inspirado ainda em nomes como Jonathan Demme, Robert Altman, Roberto Rossellini e Federico Fellini para que todos os personagens tivessem sua importância. "Tentamos dar dignidade a cada um sem criar uma hierarquia, nem uma ordem de importância para os personagens", avalia.
Para ele, a série é "uma espécie de comédia humana que descreve a vida de um grupo de expatriados em um complexo militar nos nossos dias, por suas idiossincrasias, desejos e neuroses". "Algumas pessoas podem pensar que eu criei um microcosmos utópico, mas, na verdade, descrevo um mundo que reflete o que somos hoje", define.
"Por que nos limitar a representar só a média de tudo que acontece na vida real?", questiona. "Desde criança, sempre rejeitei instintivamente essa leitura, essa interpretação da vida."
O diretor percebe que alguns dos temas abordados fazem a série dividir opiniões nesse mundo polarizado em que vivemos. "Se a série é política é porque, de alguma maneira, abre os nossos olhos para o outro e dá voz, menos suavizada do que no mainstream, a uma multidão de personagens em geral invisíveis ou pouco representados na tela."
"Posso imaginar que certos aspectos dos personagens e do seu universo narrativo poderiam ser difíceis de entender ou aceitar para algumas pessoas, porque é difícil imaginar que um personagem que pertence à minoria da comunidade LGBTQI possa expressar ao mesmo tempo beleza e um profundo cinismo", diz.
"Inclusive dois personagens como Sarah e Maggie, um casal do mesmo sexo, experimentam algumas dinâmicas internas que poderiam ser perturbadoras [mesmo] para um determinado público progressista de língua inglesa", diz o diretor sobre a série, que terá seu último exibido pela HBO, a partir das 23h, nesta segunda-feira (2).
Guadagnino diz acreditar que conseguiu atingir o objetivo de "mudar de rumo outra vez". "Como não tenho um enfoque cínico a respeito do meu trabalho, gosto de me colocar em dúvida constantemente", afirma. "Não me interessa refinar uma única maneira de fazer cinema. Gosto de pensar em um filme como uma peça de artesanato, uma peça única que não pode ser reproduzida."
Ele diz se envolver em todos os detalhes de suas produções. "Como a falta de cuidado é o meu maior medo, se um dia descobrir que os detalhes não me interessam mais, paro de fazer filmes", brinca.
Mesmo assim, ele diz que há espaço sadio para a improvisação nos seus sets. "Insisti que queria que os roteiristas estivessem no set", revela. "Quando você está ali, gravando uma cena, por menor que seja, não pode evitar se fazer milhares de perguntas. Isso acontece com os diretores, com os atores, com o pessoal do figurino, da cenografia, maquiagem... E é importante captar as ideias e fazê-las circular."
"Nesse sentido, o improviso é totalmente bem-vindo", pondera. "Devemos sempre lembrar e aceitar que a realidade está ali e vai dar forma a uma cena. No início, nunca sabemos que direção estamos tomando, depois o rumo vai se definindo gradualmente e, quanto mais você conseguir se abrir para a realidade e seguir, melhor será o entendimento do que está fazendo."
Ele afirma que, por isso, mesmo com 20 anos de carreira ainda se sente perdido às vezes. "Somos como um cego que anda tateando na escuridão e, aos poucos, começa a ver de novo, ou como uma criança", compara. "Em síntese, todos os diretores e todos os filmes seguem o mesmo caminho de um recém-nascido: um bebê vê tudo fora de foco, só consegue distinguir as sombras e os contornos das figuras mais familiares, do pai e da mãe —ou das duas mães ou dos dois pais, seja lá como for. Mas depois, à medida que a visão se desenvolve, ele tem consciência dos pais e começa a decifrar o mundo."
Ele finaliza lembrando que o nome da série (em português algo como "somos quem somos") encaixa como uma luva neste momento de vida e carreira. "Somos nós, nós juntos, 'aqui e agora'", diz. "Foi para assumir na maior medida do possível esse espírito que eu traí o meu amor pelo celuloide e voltei para a filmagem digital. Gostei da ideia de capturar, como em um espelho, um presente capaz de oferecer um fulgor de improviso, do que acontece fora da tela, da infância, da vida."