Mark Ruffalo briga consigo mesmo (e se reconforta) em 'I Know This Much Is True'
'Senti que tinha me levado ao limite, que tinha dado tudo que podia ao papel', diz ator
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"I Know This Much Is True", uma série limitada da HBO baseada no longo romance homônimo de Wally Lamb, publicado em 1998, começa com Thomas Birdey entrando em uma biblioteca pública, onde ele amputa sua mão direita. E essa é só a primeira calamidade.
Uma história de amor e sacrifício que se estende por décadas, a versão televisiva traz Mark Ruffalo no papel de Thomas e no de seu gêmeo idêntico, Dominick. O diretor Derek Cianfrance ("Namorados Para Sempre", "O Lugar Onde Tudo Termina") também escreveu seis episódios da série, que estreou dia 10 de maio.
Na tela, Ruffalo briga, reconforta e corre atrás de si mesmo, um papel duplo complicado que Cianfrance captura com posicionamento astuto das câmeras e recurso ocasional à computação gráfica, e com a ajuda de uma parada de seis semanas na rodagem. Foi nessa parada que Ruffalo, que filmou como Dominick durante sete semanas, se afastou para engordar 13 kg e deixar de lado a sua rotina de cuidados com a pele, para filmar as cenas como Thomas, que é esquizofrênico.
A série é a primeira de Cianfrance, e o primeiro trabalho de Ruffalo para a televisão em 20 anos. No mês passado, diretor e ator conversaram com a reportagem via Zoom –Ruffalo de sua casa no interior do estado de Nova York, Cianfrance de sua casa em Brooklyn. Em uma conversa de 90 minutos, com paradas ocasionais para mudar carros de lugar e reajustar o wifi, eles falaram sobre catástrofe, gêmeos e sobre os motivos para que uma tragédia familiar talvez seja exatamente o que as pessoas que estão confinadas com suas famílias precisam agora. Abaixo, trechos editados da conversa.
Você chegou a pensar, ao ler o livro, que ele talvez contenha catástrofes demais?
Mark Ruffalo Na verdade, achei que não havia catástrofe suficiente. Fiquei muito comovido com a história. Para mim, soava pessoal, de muitas maneiras. Perdi um irmão, claro [Scott Ruffalo, o irmão de Mark, foi assassinado em 2008]. Essa perda é algo da qual extraio muita emoção para o trabalho. Éramos basicamente gêmeos italianos, nascidos com pouco mais de um ano de diferença.
Derek Cianfrance Gosto de música lenta. Gosto de baladas. Uma tragédia sobre um homem e seus relacionamentos parecia um texto honesto e profundo do qual tirar um roteiro. Talvez seja culpa do meu gosto esquisito.
Mark, por que você quis fazer uma série?
Mark Ruffalo Minha mulher adora assistir séries. Ela me convenceu de que eram boas. Fiquei invejando aqueles atores que podiam realmente aprofundar seus personagens. Mas existe uma continuidade em ter um diretor e um roteirista só, algo em que insisti desde o começo. Eu e Derek sempre falamos da série como se fosse um filme de seis horas de duração. Foi assim que foi filmada.
Derek Cianfrance Em película de 35 milímetros. Nós rodamos 542 mil metros de filme, 590 horas de filme 35 milímetros. Nosso lema era "vamos manter a Kodak aberta". Isso gerou algumas limitações interessantes para nós, no set. Quando você roda um filme digital, pode gravar o quanto quiser. Mas um rolo de filme lhe dá nove minutos e 20 segundos. O uso da película estabelece esse limite. Há algo de sagrado, algo de precioso, no tempo.
Fale-me sobre o desafio de interpretar gêmeos.
Mark Ruffalo Eu sempre fui meio louco, sabe? Sempre tentei abocanhar mais do que eu conseguia engolir, como forma de autodestruição. Mas parte de mim também estava disposta a encarar o desafio da melhor maneira possível. Derek e eu não queríamos sentir que eu interpretaria Dominick e depois correria para o camarim para colocar a peruca e fazer as cenas de Thomas.
Eu rodei "The Normal Heart" [filme de 2014, baseado em uma peça de Larry Kramer, para a HBO], e paramos as filmagens para que Matt Bomer [um dos atores] pudesse perder o peso adquirido para uma parte do trabalho. Por isso eu sabia que a HBO talvez permitisse que interrompêssemos a produção para que eu pudesse ganhar peso. Nós queríamos mesmo criar duas pessoas separadas, muito distintamente diferentes uma da outra, embora eles sejam gêmeos idênticos.
Dominick é o filho predileto, criado de um modo muito masculino. Não conseguimos achar o personagem Dominick até Derek me mandar fazer 50 flexões entre as tomadas. Foi assim que posicionamos Dominick –um cara todo torso, muito tenso, muito agressivo. Thomas tem uma doença mental. Ele vive com a esquizofrenia. Mas tem uma facilidade emocional que é quase alienígena para Dominick.
Você pesquisou muito sobre como é viver com esquizofrenia?
Mark Ruffalo Muito. Foi a coisa mais desafiadora para mim. Tentamos algumas versões disso, ao longo do caminho, e nada estava funcionando; sabíamos que muita coisa dependia disso. Mas conheci uma pessoa que vive com a esquizofrenia: Richard Wheaton, e ele o faz de um modo lindo. Uma coisa que o YouTube e a mídia social oferecem é que você pode conhecer pessoas que vivem com isso; elas falam muito abertamente a respeito. Devo ter assistido mil horas de vídeos sobre pessoas que vivem com a esquizofrenia. Tentamos muitas versões diferentes de Thomas, no set também. Muitas vezes, eu vi pessoas interpretando a doença como se fosse uma personalidade. É a armadilha do processo, uma armadilha em que devo admitir que caí. Encontrar a personalidade de Thomas foi a parte mais difícil.
As cenas de Dominick foram rodadas primeiro?
Derek Cianfrance Eu não queria que esse fosse um filme técnico. Não queria que tudo girasse em torno dos truques que podemos fazer com as câmeras, dos truques usados para retratar gêmeos. E eu não queria gravar com tela verde. Não sabíamos se ia funcionar, na verdade. E é por isso que precisávamos fazê-lo, para ver se conseguíamos fazer com que esses dois caras funcionassem juntos na mesma cena. No primeiro dia em que Mark voltou como Thomas, ele ficou basicamente trancado no trailer. Mark é o ator menos prima donna que conheço, certo?
Mark Ruffalo Eu estava apavorado! (Rindo.)
Derek Cianfrance Fui ao trailer e passei uma hora com ele. Mark saiu para o set e a equipe soltou uma exclamação audível ao vê-lo. As pessoas não sabiam o que fazer. Não sabiam se podiam falar com ele. Mark se sentou e entrou no personagem imediatamente. Não tivemos de forçar coisa alguma, ele simplesmente encontrou. Interpretar alguém que tem uma doença mental é uma grande responsabilidade –todos nós soltamos um suspiro de alívio porque a cena pareceu honesta, pareceu verdadeira. Não pareceu nem um pouco afetada.
O que você fez nas seis semanas que passou fora do set, Mark?
Mark Ruffalo Não fiz flexões. Comecei a me isolar. Estava tentando imaginar uma vida em que ouvia vozes, vozes que constantemente julgam e atacam. E comendo sem parar. Cheguei a um ponto em que eu simplesmente não aguentava mais.
Cianfrance Tenho as mensagens de texto para provar.
Mark Ruffalo Fiquei louco. Passei as duas últimas semanas sozinho, em uma casa alugada, e sofrendo com muita indigestão. Não dava nem para curtir a comida. Eu tinha de dormir sentado, à noite, por conta da azia. No final, eu tive de comer farelo de aveia com meia barra de manteiga, creme pesado e xarope de folha de bordo, para chegar ao peso que precisava.
Você descreveu a filmagem como "dura e brutal". Começo a compreender por quê.
Mark Ruffalo Olha, em certo sentido é a coisa mais maravilhosa que já fiz. Mas eram 600 páginas de diálogo. Eu tinha falas em cada página. Conquistei o direito de me aposentar. Senti que tinha me levado ao limite, que tinha dado tudo que podia ao papel. Foi algo que nunca senti. Eu sempre retinha alguma coisa. Nesse trabalho, tomei a decisão: estou com 52 anos, não vou economizar coisa alguma.
Como vocês se arranjaram com as cenas de gêmeos?
Derek Cianfrance Nas cenas de Dominick, Mark precisava de alguém que fosse Thomas. Precisava de um ator real, para que as reações dele fossem vivas. Tenho um bom amigo, Gabe Fazio, que trabalhou em "O Lugar Onde Tudo Termina", e perguntei se ele estaria interessado em contracenar com Mark Ruffalo em um filme, no papel de irmão gêmeo dele. Mas com uma ressalva: ele não apareceria na tela em cena alguma. E Gabe aceitou sem hesitação. Há uma versão do filme, como uma cópia pirata, onde Gabe está em cena.
Mark Ruffalo Eu disse a Derek muitas vezes que "ele está fazendo o papel tão bem. Não se sei se vou conseguir ser melhor que isso. Não dá para deixá-lo parecido comigo?" Houve até um momento em que fizemos uma máscara do meu rosto e colocamos nele. Mas não funcionou de modo algum.
Derek Cianfrance Há modos diferentes de fazer as cenas de gêmeos: com tomadas de ângulo oposto, com recursos eletrônicos, ou usando técnicas de substituição do rosto ou cabeça. Há um punhado de momentos assim durante as seis horas. No começo, o diretor de fotografia, Jody Lee Lipes, propôs filmar como quiséssemos e deixar para resolver o lado técnico mais tarde.
Mark Ruffalo Quando um gêmeo toca o outro, quando existe contato físico direto, a coisa fica complicada. Por isso evitamos esse tipo de cena exceto por alguns momentos preciosos, momentos bonitos.
O que você acha que significa, que a série seja lançada em um momento assim estranho?
Derek Cianfrance Minha família e eu estamos isolados em casa, e tentamos assistir alguma coisa a cada noite. O ponto do entretenimento e da arte é ajudar as pessoas, confortar as pessoas, servir como amigos das pessoas. Foi o que a arte sempre fez por mim. As pessoas podem se interessar por isso ou não; podem querer assistir ou não. Tentamos fazer a coisa mais honesta que pudemos. Minha maior esperança é que a série sirva como companhia para as pessoas, que seja amiga das pessoas. Às vezes, uma amiga muito dramática.
Vocês não têm medo de deprimir todo mundo?
Derek Cianfrance Às vezes, quando você vive os momentos mais difíceis, um drama faz com que não se sinta tão só. Foi por isso que comecei a fazer filmes. Quando eu assistia a filmes nos quais todo mundo era perfeito e todos os atores tinham dentes lindos, eu sempre me sentia excluído, porque minha vida não era daquele jeito. Venho buscando a bela feiura da vida real.
Mark Ruffalo No momento tudo gira em torno da família, e nossa série é sobre famílias, a responsabilidade que temos uns para com os outros e o quanto isso é desafiador, mas também essencial. A série é perfeita para essa estranha experiência que estamos vivendo. É bruta e sincera e muito reconfortante, em sua verdade básica. Estamos ligados uns aos outros, quer gostemos, quer não. E isso nos torna melhores.
Tradução de Paulo Migliacci.