'Eu Nunca...', nova série da Netflix, tem história inspirada na vida de Mindy Kaling
Atriz fala sobre processo de seleção de elenco e se aventurar em novo gênero
Mindy Kaling, 40, não está tentando contar a história de todo mundo –ela teve de superar barreiras suficientes para contar a sua. " Never Have I Ever" ("Eu Nunca..."), a nova série criada por ela que estreou na segunda passada (27) na Netflix, parece superar mais uma dessas barreiras ao contar uma história que não costuma ser vista nas telas americanas: uma comédia contemporânea que mostra a transição de uma jovem, filha de imigrantes indianos, para a vida adulta.
"Para todos os roteiristas, especialmente os que são filhos de imigrantes" –uma categoria que descreve a maior parte da equipe–, "importava contar essas histórias de nos sentirmos como ‘o outro’”, disse Kaling, cujos pais são indianos. “Uma das melhores coisas de trabalhar com aquelas pessoas foi perceber que elas sentiam as mesmas coisas que eu, e isso foi um alívio. Pude sentir que eu era uma pessoa normal."
Para Kaling, que passou a maior parte de sua vida escrevendo personagens que ela também possa interpretar, a série representa uma nova fronteira. Veterana roteirista de humor, ela teve sua primeira oportunidade aos 20 e poucos anos, como roteirista da versão americana de "The Office", série na qual ela também interpretava a desbocada e destemida Kelly Kapoor.
Depois de cerca de oito temporadas, ela aproveitou seu sucesso para colocar em produção “The Mindy Project”, que ela criou, escreveu e estrelou: a protagonista da série era inspirada, em parte na história de sua mãe. (Kaling também escreveu dois livros humorísticos de memórias.)
Mais recentemente, ela foi um dos responsáveis pela adaptação como minissérie em dez episódios do filme “Quatro Casamentos e um Funeral”, de 1994, para o serviço de streaming Hulu, com uma história atualizada e um elenco mais diverso. Nem todos os seus projetos foram comédias românticas, mas a maioria deles continha elementos fortes do gênero. Por isso, quando a Netflix a procurou com uma proposta para que fizesse algo de completamente diferente, ela aceitou de imediato.
“Eles tinham lido meus livros e adoraram as partes em que eu falava de minha adolescência”, disse Kaling, que desenvolveu e escreveu a série em parceria com Lang Fisher, uma de suas roteiristas em “The Mindy Project”. “Porque não existia uma série como essa”, disse Kaling, “a Netflix achou que seria um ótimo encaixe para eles”.
Na hora de selecionar o elenco da série, Kaling disse que ficou entediada de ver “aquelas lindas estrelas de Bolllywood de 28 anos de idade“ fazendo testes para o papel central, Devi, uma aluna de segundo grau muito estudiosa e com pavio curto, o que a coloca em situações difíceis. (É uma história inspirada pela vida de Kaling.)
Ela decidiu postar um anúncio na mídia social procurando três “damas desi” para interpretar Devi, e sua mãe e prima. (“Desi” é um termo usado pelos membros da diáspora do sul da Ásia para se referirem à região.) Quase 15 mil atrizes se candidataram, entre as quais a novata Maitreyi Ramakrishnan, que conquistou o papel de Devi.
Em uma entrevista recente por telefone, Kaling falou sobre o processo de seleção de elenco, sobre se aventurar fora do gênero comédia romântica e sobre tentar adaptar suas experiências à vida dos adolescentes atuais.
Em que medida a série é autobiográfica? E como você a atualizou para as meninas de origem indiana nos Estados Unidos atuais?
A Netflix topou que fizéssemos a história como algo passado nas décadas de 1980 ou 1990, mas eu já tinha visto isso feito tão bem, em séries como “Fresh Off the Boat” e “Everybody Hates Chris”, que preferi falar para a garotada de agora. Também achei que essa seria uma ótima maneira de contratar muitos roteiristas jovens, americanos de origem indiana, capazes de lembrar de adolescências que aconteceram depois da minha, e formar nossa equipe com eles. E as atrizes jovens da série despertaram minha cobiça. Maitreyi é um recurso, por si só. Quando ela lia as falas nos ensaios, nós mudávamos a linguagem para adaptá-la a alguém de sua idade.
E o que fez com que Maitreyi se destacasse entre os milhares de candidatas que se apresentaram para a seleção de elenco?
Havia alguma coisa especial em Maitreyi. Ela contou mais tarde que tinha se sentido intimidada por vir de avião a Los Angeles para o teste, mas quando conversou conosco ela mostrou muita confiança natural. Eu amei o fato de ela ser tâmil, como eu. Penso muito em coloração, além disso, e adorei o fato de ela não ser uma dessas meninas indianas de cabelos ruivos, olhos verdes e pele pálida. Gostei do fato de que ela era mais parecida com alguém da minha família. E ela também era naturalmente engraçada.
Nos seus trabalhos anteriores, você sempre parecia estar operando no gênero da comédia romântica. Você sentiu que isso a limitava?
Sempre vou amar comédias românticas, e não vejo um mundo em que eu não volte a visitar o gênero. Mas mais até do que escrever sobre adolescentes, escrever sobre as experiências dos americanos de origem indiana, quando jovens, me fascinava. E também era doloroso. Se você é uma pessoa com senso de humor, na casa dos 20 e dos 30 anos, isso normalmente significa que sua adolescência foi muito dolorosa, não é?
Você está na vanguarda da representação das pessoas de origem sul-asiática, mas houve críticas a alguns de seus primeiros papéis, por serem estereotipados demais. Como foi essa experiência para você? Você sente que isso a ajudou a crescer?
Denzel Washington certa vez disse uma coisa que sempre relembro. Alguém perguntou por que ele não interpretava bandidos com mais frequência, e ele disse algo como: Somos poucos, e significo demais para minha comunidade, e por isso acho que isso não é algo que eu possa fazer nesta vida.
Isso realmente calou fundo, para mim, porque achei que era muito inteligente da parte dele, sobre uma coisa com a qual eu não fui inteligente. Venho da comédia, na qual os personagens mais engraçados são os que têm mais falhas, como Michael Scott (o papel de Steve Carell em “The Office”), e meu treinamento era em escrever esse tipo de personagem. O problema é que eles são todos brancos. Assim, quando você tenta interpretar um personagem desses e é indiana, e é o único personagem indiano no programa, é compreensível que os indianos questionem “como você ousa fazer isso conosco? Nós não temos representação”.
O personagem tem prioridades distorcidas, diz coisas grotescas, é egoísta e tudo mais que não sou pessoalmente, mas acho divertido interpretar alguém assim. Tive dificuldades com isso, porque sempre quero ter a experiência artística mais apreciável. Mas essa preferência não se enquadra sempre ao meu papel como exemplo.
Você ainda enfrenta esse tipo de crítica?
Lembro de quando o trailer da série saiu e Devi aparece rezando; ela diz “ei, deuses, sou eu, Devi Vishwakumar”, e alguém comentou no Twitter, dizendo que “poxa, meninas hindus não falam assim”. E lembro de que me irritei porque minha mãe costumava nos obrigar a rezar antes dos exames escolares, ou antes de embarcarmos em um avião, e eu não sabia todos os diferentes nomes dos deuses, porque ninguém tinha me ensinado, e dizia coisas como “ei, deuses, me deixem ir bem no exame. Dei o maior duro para isso, e é importante para os meus pais”.
O que percebi é que, porque não temos muitos programas em que adolescentes hindus sejam mostrados rezando [risos], as pessoas se ofendem quando a coisa não é exatamente como era para elas. Ainda estou tentando descobrir uma maneira de aceitar essas críticas. As pessoas que assistem ao programa, especialmente as jovens americanas de origem indiana, são as pessoas que quero que gostem mais da série. E elas serão as críticas mais severas do meu trabalho. E assim essa é uma das coisas que mais me preocupam como artista, agora.
Como você lida com a pressão de contar uma história que deseja contar, quando ao mesmo tempo não sente que ela precisa ser a história de todas as pessoas com origem no sul da Ásia?
Estou contando uma história que ecoa para mim, sobre uma personagem muito específica. E creio que seja meu estilo apontar para esse fato numerosas vezes. Além disso, quero viver muito tempo, para poder contar histórias com tipos diferentes de personagens –indianos, paquistaneses, muçulmanos etc.– e mostrar que existem muitas maneiras diferentes de ser desi. Seria a única maneira de fazê-lo. Também penso em alguém como Ava DuVernay. “Cherish the Day” é tão diferente de “A Wrinkle in Time”, mas os dois filmes contam histórias sobre jovens americanas negras. Eu adoraria ter um relacionamento parecido com os sul-asiáticos dos Estados Unidos.
Para você como criadora, então, qual é a próxima fronteira na representação das pessoas do sul da Ásia?
Depois de assistir a centenas de testes, vi que a fome que eu esperava que existisse está mesmo lá. Se a série for bem, com sorte, e se passar a parecer mais normal ver pessoas indianas em mais papéis, quem sabe mais séries assim sejam aprovadas? Para mim, seria excelente se houvesse mais conteúdo LGBTQ para as pessoas indianas. Sinto que esse é um assunto sobre o qual quase não se fala. Em algumas comunidades indianas, sair do armário ainda carrega um estigma. Eu adoraria contar uma história sobre uma jovem “queer”. E, caso eu não veja algo assim, talvez precise criá-la.
O título me deixou curiosa. Qual foi o raciocínio por trás de “Eu Nunca...”[o jogo]?
(Risos.) Sou muito ruim em dar nome às coisas, e é por isso que minha série se chamava “The Mindy Project”. O título da nova série foi ideia de Lang, minha parceira na criação do programa. Temos uma personagem cujo ego se enrosca com as coisas que ela ainda não fez, com as coisas às quais ainda não foi exposta. E o título pareceu se encaixar naturalmente à personalidade dela. Talvez o nome seja ruim. Não sei, provavelmente é péssimo.
Tradução de Paulo Migliacci