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Médica de 'The Cave', candidato ao Oscar, torce para que sucesso do filme renda ajuda aos sírios

Pediatra protagoniza documentário que concorre com brasileiro 'Democracia em Vertigem'

Dra. Amani (à esq.) cuida de criança - Divulgação/National Geographic

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São Paulo

“The Cave”, indicado ao Oscar de melhor documentário, não retrata só uma situação dramática de guerra. O longa do sírio Feras Fayyad, que estreou na Nat Geo no dia 3 de fevereiro, só existe por também ser uma operação de guerra ambulante, com direito a seus próprios jogos de espionagem e sobrevivência.

E a pediatra Amani Ballour é a protagonista do documentário. Ela tratou milhares de crianças em um hospital subterrâneo na Síria em meio a guerra.

Para ela, o sucesso e os holofotes voltados ao filme serão importantes para mostrar o que acontece com o povo sírio e conseguir ajuda.

Em entrevista à Nat Geo, Amani fala dos desafios de enfrentar uma sociedade que sempre viu as mulheres como o sexo mais fraco, da expectativa para a premiação de domingo (9), sobre como a vida dela mudou após virar uma refugiada e sobre a sua reação ao ficar sabendo que o hospital no qual trabalhava poderia ser bombardeado.

Confira a entrevista

Este documentário é indicado ao Oscar. Mas não é apenas um filme, é sua vida e seu trabalho que serão exibidos ao mundo... Sim.  É a minha realidade. Não é apenas um filme. Significa tudo! É a história do meu país, das lutas do povo sírio, da luta das mulheres. Claro que é importante estar nisso e espero que o filme alcance o maior número de pessoas ao redor do mundo. Precisamos que mais pessoas vejam e saibam do que está acontecendo, que conheçam a verdade, para nos apoiar. É claro que o fato de ser indicado ao Oscar nos dá um apoio ainda maio.! Espero, quem sabe, pressionar os políticos e receber ajuda de alguma comunidade internacional para ajudar a Síria e para fazer algo por nós. 

Qual foi o seu grande desafio como mulher em enfrentar uma sociedade que sempre viu as mulheres como o sexo mais fraco? Sim, a nossa sociedade tem culturas e costumes contra as mulheres, isso vem de muito tempo. Eles têm uma imagem que as mulheres devem estar em casa para se casar cedo e trabalhar apenas em casa, limpando e cozinhando. Isso é tudo. Eu queria mudar essa ideia sobre as mulheres. Eu sou médica, estudei da mesma forma que meus colegas e os gerentes dos hospitais que estavam antes de mim. Eu sou uma médica como eles. Então, eu queria mostrar que posso ser uma gerente como eles também. Eu queria provar para minha comunidade e sociedade que eu posso trabalhar da mesma forma que eles ou talvez até melhor, porque eu tenho muita experiência, trabalho na área há muito tempo.

Sobre The Cave, o hospital, eu planejei como poderíamos lidar com tudo, principalmente, como proteger o hospital e obter remédios e suprimentos. Então eu acredito muito na minha capacidade e que posso fazer tudo que diziam que eu não podia. Minha comunidade e os homens acreditavam que eu não poderia estar aqui, que essa não era a minha posição; isso me fez insistir para provar que eu posso, sim, fazer a diferença e mudar este local, porque estamos trabalhando juntos, homens e mulheres, e estamos nas mesmas circunstâncias. Estamos todos juntos, no mesmo hospital. Portanto, não há diferença entre homens e mulheres. 

Durante o último ano, vimos milhões de sírios fugirem do país devido à guerra. Você já pensou em fugir de lá? Eu queria estudar medicina desde pequena para ajudar as pessoas. Eu acredito na humanidade e que devemos ajudar os outros. Por isso escolhi estudar medicina. Eu também queria ser pediatra porque gosto de crianças e queria ajudá-las. Infelizmente, no início da revolução vários médicos decidiram deixar o país, o que foi surpreendente para mim. Devemos ajudar as pessoas quando elas precisam. E eu decidi ficar e ajudar essas pessoas. Você pode imaginar o quão horrível é ver crianças com lesões ou feridas? Portanto, para mim é óbvio ficar e ajudar todos os filhos de civis das escolas e hospitais, e foi bastante claro para mim que eu tinha que continuar na Síria ajudando a todos que eu conseguisse.

Como sua vida mudou desde que você se tornou uma refugiada? E como foi a vida trabalhando em 'The Cave' com todos os bombardeios e ataques químicos? Na verdade, ser refugiada é uma coisa muito difícil para mim. Não imaginava que talvez um dia deixaria meu país e seria uma refugiada e até agora ainda não me acostumei. Eu não me sinto feliz. É claro que tem a questão que onde estou agora é seguro, porque não há bombardeios. Mas quando eu estava lá ajudando as pessoas o tempo todo, ajudando as crianças, eu sentia que eles precisavam de mim. Então eu era feliz por poder ajudá-los. Eu poderia fazer uma mudança e eu sabia que estava fazendo a diferença.

Quando saí, fiquei sem esperança, triste e frustrada com tudo. Agora, depois de mais de um ano, acredito que posso ajudar mais daqui, porque talvez com esse filme, por exemplo, eu possa alcançar mais pessoas, dizer a verdade sobre a Síria e, quem sabe, conseguir ajuda para os sírios. Portanto, não vou mais ficar sem esperança. Continuarei trabalhando para ajudar o povo sírio no lado humanitário.  

Havia informações confirmando que Assad e a Rússia planejavam bombardear hospitais. Como você reagiu a isso enquanto trabalhava no hospital subterrâneo? E notou qualquer mudança quando a Rússia começou a apoiar al-Assad, em 2015? Sim, na verdade, quando a Rússia começou a apoiar Assad, eles atacaram nosso hospital. Eles miraram "The Cave" e destruíram uma parte do hospital e mataram três dos meus colegas. Eles miraram em todos os lugares: hospitais, civis, crianças, escolas, escolas primárias. Eles bombardearam uma escola primária. Você consegue imaginar isso? Então eu senti raiva porque a comunidade internacional viu isso e eles não fizeram nada. Desde que a guerra começou, cerca de nove anos atrás, eles fazem o que querem. Para a Rússia tudo era algo, eles não se preocupam com nada. Eles não pensam nos humanos, agora, alguns dias atrás, eles atacaram um hospital no interior, o destruíram e isso ainda está acontecendo.

O mundo inteiro observa a guerra na Síria, falamos o tempo todo sobre isso, pedimos ajuda às pessoas, às comunidades internacionais, aos países fortes, mas eles não fazem nada por nós. Não sei o que temos que fazer para ter ajuda. 

Você acha que ter uma indicação ao Oscar ajudará a gerar uma maior esperança de mudança ou dar mais atenção ao drama que as pessoas estão vivendo? Sim. A situação na Síria agora é pior a cada dia. Eu disse que estou esperançosa de que vamos conseguir fazer essa mudança e que vamos conseguir pressionar os políticos da comunidade internacional ou qualquer país que consiga nos ajudar, porque agora mais pessoas vão saber a verdade sobre o que aconteceu e acontece todos os dias na Síria. Então isso deve nos ajudar! Porque a situação continua a mesma há anos. Alguns dias atrás três cidades foram bombardeadas, por exemplo. Essas situações fizeram com que muitas pessoas se deslocassem para os campos, o que é um verdadeiro sofrimento. Algumas pessoas nem sequer encontraram uma barraca para ficar no frio e no inverno. Eu quero que o filme gere essa mudança, que atinja mais pessoas, isso é o que eu quero, mas ainda não aconteceu.

Qual foi a situação mais difícil que você enfrentou nesse trabalho e quanto tempo levou para superá-lo? Em 'The Cave', estávamos em uma zona de guerra, todos os dias. Uma vez tivemos um massacre e muitos feridos e o mais difícil, como médico, é escolher quem você quer ajudar. Quando acontece um massacre e tem cem pessoas feridas ou, às vezes até mais, você não tem como trabalhar e ajudar todos eles. Às vezes, nós escolhemos os casos mais graves e começamos por ele. Nós tínhamos apenas alguns médicos e alguns suprimentos médicos, por isso não conseguimos ajudar a todos.

Um dos momentos marcantes foi no ataque químico de 2013. Foram milhares de vítimas e todos eles tinham os mesmos sintomas. Eles estavam sufocando e tivemos que escolher quem iríamos ajudar. Foi muito difícil. 

Como as meninas reagem ao ver que o médico era uma mulher e não um homem? Como elas reagem ao ver uma mulher em uma posição de poder no 'The Cave'? Quando eu era criança, ninguém veio até mim e me disse que eu tenho direitos, que eu podia ser algo. Várias crianças estavam indo para o hospital e não porque estão doentes, mas sim porque eles estavam com medo, então eles se escondiam lá enquanto o lado de fora estava sendo bombardeado. Elas iam ao hospital e eu costumava falar com eles, conversava com as crianças, porque elas confiavam em nós e nossas palavras ficavam presas em suas mentes. Isto é o que eu quero dizer para as meninas: que elas têm direitos e que elas podem ser algo importante. E isso foi muito bom, porque algumas meninas costumam me dizer: “Queremos ser médicas como você.”. Então para mim era muito bom saber que eu estava inspirando-as.  

Que mensagem você daria à comunidade internacional sobre a guerra e a crise humanitária na Síria? Quero dizer que eles precisam assumir suas responsabilidades em relação aos civis. Somos todos seres humanos e atualmente eles não se preocupam com o está acontecendo. O povo sírio vem sofrendo há nove anos e é vergonhoso a comunidade internacional não fazer nada para ajudar! A comunidade, inclusive, nos decepcionou muito e muitas vezes. Se eles não querem nos ajudar, então parem de falar sobre os direitos humanos, porque é como se eles fossem mentirosos, quando falam isso. Na Síria, as pessoas estão irritadas, estão sofrendo e ainda as cidades continuam sendo bombardeadas. Bashar al-Assad é um criminoso e ele controla Síria agora. Muitas pessoas são detidas em suas prisões e estão sendo torturadas por longos anos. Essa guerra não pode ser esquecida.

A comunidade internacional tem que fazer alguma coisa. Eles têm que mudar essa situação para ajudar os humanos que estão lá. Quero que você fale sobre a Síria e lembre o mundo sobre a Síria. Porque tudo o que você viu no "The Cave" ainda está acontecendo agora e eles precisam da sua ajuda porque as pessoas têm esperança de que alguém pense nelas.