Celebridades

Sam de 'iCarly' lança livro de memórias em que celebra morte da mãe

Jennette McCurdy revisita relação conturbada e bastidores de seu sucesso precoce

Jennette McCurdy em Nova York - Ahmed Gaber/The New York Times

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Quando Jennette McCurdy tinha 16 anos, ela estava gravando a terceira temporada da série "iCarly", uma sitcom adolescente que fez muito sucesso na rede Nickelodeon. Milhões de jovens espectadores a admiravam por sua interpretação engraçadíssima de Sam Puckett, a amiga desbocada da personagem título da série, e McCurdy se sentia orgulhosa de ter um emprego lucrativo que permitia que ela ajudasse a sustentar sua família.

A atriz vivia sob o rigoroso controle da sua mãe, Debra, que supervisionava sua carreira, decidia sobre suas refeições –os jantares dela consistiam de pedacinhos picados de mortadela de baixo teor calórico e alface, com um molho de salada—, e controlava até o tempo que ela passava no banho.

A mãe de McCurdy a submetia a exames vaginais e de seios, afirmando que eram inspeções de prevenção de câncer, e depilava as pernas da filha, que recebia quase nenhuma informação sobre as mudanças que seu corpo estava vivendo.

Ela enfrentou distúrbios obsessivo-compulsivos, distúrbios alimentares e ansiedade, causados pela atenção constante que recebia como celebridade, mas sentia-se uma prisioneira em seu trabalho. Também acreditava dever uma lealdade inabalável à sua mãe, que tinha se recuperado de um câncer de mama quando Jennette era muito nova –um câncer que retornou em 2010, no auge da fama da filha.

Debra McCurdy morreu em 2013, e Jennette, 30, continua a ter de lidar com a atração gravitacional exercida por sua mãe, que a conduziu à profissão que lhe valeu fama e estabilidade financeira mas ao mesmo tempo controlava praticamente todos os aspectos da existência da filha.

Quando Jennette McCurdy escreveu um livro de memórias, que a editora Simon & Schuster lançou na semana passada nos Estados Unidos, ficou claro para ela que era o relacionamento com sua mãe que proporcionaria força narrativa à história.

"É o batimento cardíaco da minha vida", disse a atriz recentemente.

O título do livro é "I'm Glad My Mom Died" [fico feliz por minha mãe ter morrido], e a capa traz a imagem de McCurdy, com um meio-sorriso no rosto e segurando uma urna funerária cor-de-rosa, da qual confetes escapam pela borda. É uma imagem que pode afastar alguns leitores, e a autora está bem ciente disso. Mas ela também acredita que a imagem encapsula com exatidão uma história de amadurecimento que alterna momentos sombrios com relances de humor ferino.

Quando uma pessoa cresce como McCurdy cresceu, sentindo ternura e raiva com relação a alguém que exercia um poder imenso enquanto ela batalhava por assumir o controle da própria vida, "mal dá para acreditar o quanto a coisa é difícil e ao mesmo tempo risível. E é assim que meu senso de humor funciona".

"Acho que fiz o processamento necessário, que me esforcei o suficiente para justificar um título ou um conceito que possa parecer provocador", ela disse.

Embora o currículo de McCurdy seja o de uma experiente veterana de Hollywood, o comportamento dela em uma visita a Nova York no final de junho era o de uma turista deslumbrada. Durante um chá no BG Restaurant, na região central de Manhattan, ela contemplou abertamente os demais fregueses, pediu recomendações de teatro na Broadway, e zombou de si mesma por uma aula de meditação transcendental que ela tinha feito, perto de sua casa em Los Angeles.

"Até agora, não vi resultado algum", ela disse, rindo. "Mas vamos esperar".

Quando se trata de novas empreitadas, disse McCurdy, "acho que as coisas devem parecer-se naturais. Passei boa parte da minha vida forçando coisas, batalhando com relação a coisas. Agora, quando algo parece estar funcionando, deixo quieto, e tudo mais eu largo pelo caminho".

Como McCurdy relata no livro, ela tinha seis anos quando começou a fazer audições para papéis de televisão, depois de ser induzida pela mãe a apostar nesse caminho. (Os pais de Debra McCurdy desencorajaram seu desejo infantil de se tornar atriz.)

Jennette cresceu no sul da Califórnia, e fez participações em comerciais e séries de televisão como "Mad TV", "Malcolm in the Middle" e "CSI", antes de conseguir o papel em "iCarly", que estreou em 2007. Mas ela jamais teve ilusões sobre quem estava se beneficiando realmente dessas conquistas. Ao escrever sobre o momento em que foi informada de que tinha sido escolhida para "iCarly", ela afirma: "Tudo vai melhorar. Mamãe enfim ficar feliz. O sonho dela se tornou realidade".

McCurdy teve de suportar muitos embaraços e indignidades na Nickelodeon; no livro, ela conta que teve de posar de biquíni para uma sessão fotográfica de teste e que foi encorajada a beber álcool por uma figura intimidadora a quem chama simplesmente de "o Criador". Em momentos como esses nos quais Debra estava presente, ela jamais interveio ou se pronunciou —pelo contrário: sua reação era dizer à filha que aquele era o preço do sucesso no show business.

"Todo mundo quer o que você tem", ela dizia a Jennette.

Quando prometeram a McCurdy uma série derivada de "iCarly", ela presumiu que comandaria o elenco –mas terminou dividindo com a futura estrela pop Ariana Grande o comando da série "Sam & Cat".

Naquele momento, ela conta, seus superiores no programa a impediam de buscar outras oportunidades fora da série, enquanto Grande prosperava em seu trabalho extracurricular. McCurdy escreve que "o que finalmente me desiludiu foi quando Ariana chegou ao estúdio soltando gritinhos de entusiasmo porque tinha passado a noite anterior jogando charadas na casa de Tom Hanks. Aquele foi o momento em que quebrei".

À medida que McCurdy crescia e se tornava mais independente, sua relação com a mãe se tornou ainda mais tensa. O livro reproduz um email no qual a mãe a define como "VADIA", "SIRIGAITA" e "MONSTRO HORRÍVEL", e termina com um pedido de dinheiro para comprar um refrigerador. Quando o câncer voltou e Debra morreu, Jennette, 21, estava livre –e se viu forçada a navegar por um mundo complexo sem a orientação de Debra, lutando com relações românticas destrutivas, bulimia, anorexia e abuso de álcool.

A série original de "iCarly" terminou em 2012, e "Sam & Cat" durou apenas uma temporada, 2013/2014; depois disso, revela McCurdy no livro, ela recusou uma oferta de US$ 300 mil (mais de R$ 1,5 milhão) em bonificação da Nickelodeon se ela concordasse em jamais falar publicamente de suas experiências na rede. (Um representante de imprensa da Nickelodeon recusou-se a comentar.)

Ela estava livre para recuperar o controle de sua vida pessoal e buscar novos projetos, como a série de ficção científica "Between", na Netflix. Mas McCurdy enfrentou dificuldades para esquecer o ressentimento que sentia pelo tratamento que recebeu quando mais nova. Ela declarou em uma entrevista que "a sensação era de que aquelas decisões todas estavam sendo tomadas em meu nome, e eu era a última a saber sobre elas. Isso é realmente irritante. Causou muita raiva".

Ainda hoje, McCurdy sente que recordar a época de seu estrelato infantil redesperta sentimentos cruéis sobre uma mãe, e uma profissão, que não a protegeram como deveriam.

"Fui muito explorada durante toda a minha infância e adolescência", disse a atriz, com os olhos marejados de lágrimas. "Meu sistema nervoso ainda reage quando falo a respeito. Havia casos em que as pessoas tinham as melhores intenções e talvez não soubessem bem o que estavam fazendo. E também casos em que sabiam. Sabiam exatamente o que estavam fazendo."

Marcus McCurdy, o mais velho dos três irmãos de Jennette, disse que sua mãe sempre foi instável, quando eles eram crianças. "Nós estávamos sempre pisando em ovos. Ela vai ser a mãe boazinha ou a mãe louca, hoje? Um dia ela estava bem, no dia seguinte saía gritando com todo mundo. Nossas férias todas eram superdramáticas. Ela perdia a cabeça no Natal, se alguma coisa não estivesse perfeita."

Amigos e colegas que conhecem Jennette McCurdy desde que ela era uma atriz infantil disseram que a tensão na relação dela com a mãe era perceptível, mesmo que ainda não soubessem os detalhes.

"Jennette tem momentos muito extrovertidos, e pode ser desenvolta, atrevida, brilhante e elétrica", disse David Archuleta, um cantor pop que foi finalista do programa American Idol. "Mas também era perceptível que ela era muito cautelosa, muito protetora de sua mãe, e as duas eram muito próximas."

Archuleta, cuja carreira foi controlada de perto pelo seu pai quando o cantor era menor, disse que arranjos como esses podem ser destrutivos para as crianças.

"Porque você está sempre com essa pessoa, ela não permite que você se aproxime dos outros", disse Archuleta. "E você não entende isso como uma coisa de controle, mas sim como ‘oh, eles estão tentando cuidar de mim’. E criam a sensação de que todas as outras pessoas estão contra você."

Com o tempo, acrescentou Archuleta, essa presença paterna ou materna pode se tornar tóxica.

"Chega um ponto em que você ouve que é incapaz de tomar decisões por si próprio. Não é capaz de fazer nada por si próprio. Porque você é burro demais."

Miranda Cosgrove, a estrela de "iCarly", disse que embora ela e McCurdy tenham se aproximado rapidamente no programa, ela inicialmente desconhecia muitas das dificuldades que a amiga enfrentava, e que McCurdy só as revelou com o passar do tempo.

"Quando você é jovem, vive muito dentro de sua própria cabeça", disse Cosgrove. "Não consegue imaginar que as pessoas à sua volta talvez estejam passando por lutas muito mais duras."

Com ternura na voz, Cosgrove acrescentou que "você não imagina que isso esteja acontecendo na vida da pessoa que faz todo mundo rir".

Para McCurdy, se abrir ao mundo sobre sobre sua vida vem sendo um processo demorado. No final da adolescência e no começo da casa dos 20 anos, ela escreveu uma série de artigos para o The Wall Street Journal na qual revelava alguns de seus insights sobre o estrelato infantil. Mas hoje ela sente que não foi suficientemente franca.

"Se eu tivesse sido sincera àquela altura", explicou ela, "teria dito, 'sim, escrevi isto e logo em seguida fui vomitar sem parar durante quatro minutos".

Há alguns anos, McCurdy começou a escrever uma nova série de ensaios pessoais, incluindo vários sobre a sua mãe, e os mostrou ao seu então empresário.

"Ele respondeu com um belo email que dizia que aquilo era ótimo, mas não sabia bem o que fazer com os textos. Nunca vou esquecer o ‘xoxo’ no final", disse a atriz. (McCurdy já não trabalha com esse empresário).

O que ela fez foi começar a se apresentar em um "one woman show", também chamado "I'm Glad My Mom Died", em Los Angeles. Embora a pandemia tenha impossibilitado a realização de uma turnê, McCurdy pôde usar parte do tempo de lockdown para elaborar suas memórias.

"Eu queria reforçar o texto, entrar mais no aspecto infantil da história e trabalhar todo o arco da narrativa, algo que só é possível fazer em um livro", ela explicou.

Marcus McCurdy disse que apoiava a decisão da irmã de escrever suas memórias, mesmo que o título que ela escolheu tenha causado alguma consternação na família.

"Nossa avó ficou muito incomodada com o título", disse Marcus McCurdy, acrescentando que ele e a sua irmã compartilham de um senso de humor semelhante.

"E ele talvez seja um mecanismo de adaptação", ele disse. "Você pode passar o tempo todo choramingando e dizendo que a vida é horrível, ou encontrar o humor em coisas que são realmente trágica."

Archuleta também disse que escrever o livro era uma maneira de McCurdy recuperar o poder.

"Devolveu-lhe parte da sua força, da sua confiança", ele afirmou.

McCurdy está escrevendo um novo conjunto de ensaios sobre a maneira pela qual ganhou controle sobre sua vida, depois dos 20 anos, assim como um romance. (A protagonista do romance, ela disse, é "ou quem eu gostaria de ser, em alguns aspectos, ou quem eu espero nunca ser, em outros aspectos. Mas provavelmente sou eu, certo?")

Excetuadas algumas festas nas quais sua família se reuniu para assistir ao seu primeiro trabalho em uma série televisiva, McCurdy me disse que "nunca vi nenhum dos programas de que participei". Para ela, os programas são documentos inquietantes sobre seu sofrimento e lembretes indesejáveis do desamparo que sentia naquele período.

Alguns anos atrás, depois do cancelamento de sua série na Netflix, McCurdy decidiu fazer uma pausa no trabalho como atriz. Como ela escreve em seu livro, "quero que a minha vida esteja sob meu controle, e não sob controle de um distúrbio alimentar, de um diretor de elenco, de um agente ou de minha mãe, mas sob meu controle". Ela não participou da retomada recente de "iCarly" no serviço de streaming Paramount+. Mas McCurdy disse que a sua experiência fazendo seu "one woman show" lhe mostrou que talvez haja maneiras de o trabalho como atriz se provar construtivo para ela, no futuro.

"Foi significativo, para ajudar a reparar parte do relacionamento pesado e complicado que sempre tive com a atuação", ela disse. "Senti que finalmente estou dizendo minhas palavras, dizendo coisas que quero dizer. Sou eu mesma".

Embora McCurdy às vezes ainda ache desconfortável refletir sobre o seu passado, a reflexão também a faz ter esperança de se concentrar no presente e de dar atenção aos amigos e colegas que fazem parte da sua vida, porque ela escolheu sozinha que eles estivessem nela.

"Agora tenho pessoas à minha volta que me apoiam e são muito amorosas", disse McCurdy. "Isso me faz chorar de alegria. Sinto-me muito segura. Sinto muita confiança e muita abertura."

Tradução de Paulo Migliacci