Celebridades
Descrição de chapéu The New York Times

A cultura das celebridades está em chamas com a pandemia do novo coronavírus

Dentro de mansões, famosos fazem lives dizendo que 'estamos todos no mesmo barco'

Cultura das celebridades é alterada pelo coronavírus ORG XMIT: XNYT90 - Cari Vander Yacht/The New York Times
Amanda Hess
Nova York

Os Estados Unidos estão em crise, mas as celebridades continuam prosperando. Elas entram sorrindo em nossos lares via lives, nos lembrando de que é importante ficar em casa e "continuar pensando positivo", porque "estamos todos no mesmo barco".

Quando assisto aos vídeos postados por celebridades, percebo que minha atenção resvala para os limites da moldura, para o relevo em gesso discreto na parede de Robert DeNiro, para as colunas de madeira da sacada de Priyanka Chopra, para o papel de parede com tema equino que enquadra a lareira crepitante de Zoe Kravitz.

"Ficar em casa é meu superpoder", disse Gal Gadot, a estrela de "Mulher-Maravilha", de dentro de seu enorme closet. Ryan Reynolds instou seus fãs a "trabalharem juntos para achatar a curva", de dentro de seu loft rústico. Quando Jennifer Lopez postou um vídeo de sua família abrigada no quintal da imensa casa de Alex Rodriguez em Miami, o público perdeu a paciência. "Nós todos odiamos vocês", foi uma das respostas mais representativas.

Entre os efeitos sociais do coronavírus está o desmantelamento acelerado do culto da celebridade. Os famosos são embaixadores da meritocracia; representam a busca americanas de riqueza por meio do talento, charme e trabalho duro.

Mas o sonho da mobilidade social desaparece quando a sociedade se trancafia, a economia trava, o número de mortes cresce, e o futuro de todos parece congelado, dentro de um apartamento apertado, ou dentro de uma mansão palaciana. A diferença entre as duas coisas jamais foi tão evidente. A hashtag #guillotine2020 está fervilhando. Com as mercadorias escasseando nas lojas, houve quem sugerisse que talvez devêssemos comer os ricos

Assim, quando Pharrell Williams pediu que seus seguidores doassem dinheiro para ajudar o pessoal que está combatendo a epidemia nas linhas de frente, eles virtualmente o seguraram pelas calças e o sacudiram de cabeça para baixo, mandando que esvaziasse os bem abastecidos bolsos.

Kristen Bell e Dax Shepard foram "expostos" como senhorios. Enquanto Ellen DeGeneres, refestelada em eu sofá, conversava em vídeo com amigos famosos, o humorista Kevin Porter pedia histórias ao pessoal do setor de serviços e aos lacaios de Hollywood que tiveram dificuldades com DeGeneres, a quem ele definiu como “notoriamente uma das pessoais mais ranzinzas do planeta”.

O filme “Parasita”, no qual uma família de sul-coreanos pobres usa a esperteza para conseguir acesso ao lar de uma família rica, foi convertido em uma resposta instantânea de mídia social sempre que celebridades oferecem um vislumbre de suas mansões; o sucesso da referência se deve em parte ao fato de que tantas das pessoas mais ricas vivam em casas igualmente minimalistas e chochas.

Deve ser um momento difícil para ser famoso. As celebridades não estão entre os americanos mais ricos –o patrimônio de Lopez equivale a uma fração do patrimônio de Jeff Bezos– mas são elas as encarregadas do contato com o público geral, oferecendo acesso diário ao seu estilo de vida.

A cultura da celebridade os glorifica não só por seus desempenhos ou personas, mas pela riqueza que conquistam –as festas extravagantes nos aniversários de seus filhos, coleções de carros, cirurgias plásticas e imóveis acumulados.

De “Lifestyles of the Rich and Famous” a “My Super Sweet Sixteen” e "Keeping Up With the Kardashians”, a capacidade de assistir (ou assistir com ódio) a esse espetáculo de excessos funciona com o uma forma bizarra de apaziguamento da desigualdade.

Esse acordo depende da capacidade das celebridades para transitar facilmente entre a elite e a massa; elas precisam a um só tempo se mostrar acessíveis e servir de exemplo às aspirações. E sob circunstâncias normais, estão acostumadas a receber elogios por “usar suas plataformas” a fim de “conscientizar” as pessoas sobre iniciativas cálidas pelo bem público.

Mas jamais foi tão fácil conscientizar e abusar da conscientização. As celebridades contam com audiências cativas de pessoas traumatizadas que estão coladas à internet, com os olhos saltando de tópico a tópico em busca de pistas sobre como processar os horrores inimagináveis que aguardam do lado de fora, e em lugar disso o que encontram é uma imagem de Madonna em uma banheira repleta de pétalas de rosas.

Jogadas como o cover organizado por Gadot, com celebridades cantando “Imagine”, de John Lennon, desafinam em mais maneiras do que a evidente. A maioria dessas pessoas nem sabe cantar; suas contribuições sugerem que basta olhar para uma celebridade para encontrar alívio, como se bastasse uma imagem de sucesso para combater a pandemia.

Uma das ironias do momento é que ainda que nos sintamos menos como estrelas do que em qualquer momento do passado, elas parecem se sentir mais parecidas conosco –ou pelo menos com aquilo que imaginam que nossa vida seja. DeGeneres está “louca de tédio” por ter de ficar dentro de sua casa enorme. Já Katy Perry já até perdeu a conta do número de dias que passou sem poder sair de sua casa enorme.

Madonna elevou o coeficiente de falta de noção das celebridades ao nível de uma arte performática. Em uma série de vídeos estranhamente profissionais para o Instagram, o que talvez sugira uma perigosa concentração de subordinados em sua casa, ela é vista realizando um bizarro procedimento de tratamento em sua clínica de saúde pessoal, e de quimono, diante de uma máquina de escrever, discorrendo sobre os efeitos sociais do vírus.

Para Madonna, cantar em público e hipnotizar os fãs “é outro luxo que se vai, pelo menos por enquanto”, ela diz em um dos vídeos. Em seu lugar fica uma sensação perturbadora de normalidade. ”A audiência em minha casa não se diverte comigo”, ela diz. Mais tarde, da banheira, ela conclui que a Covid-19 é “o grande equalizador”.

Mas as peripécias das celebridades, mesmo que elas sejam expostas à vergonha pública, continuam a atrair nossa atenção. Jamais pensei tanto sobre Gal Gadot em minha vida. O coronavírus é uma estranha crise em que fazer nada de fato ajuda –ficar dentro de casa pode salvar vidas. E além da comida e do dinheiro de aluguel, e dos cuidados médicos, as pessoas precisam de entretenimento suficiente para encarar o confinamento.

Mas se devo prestar atenção a celebridades em um momento como esse, a contribuição delas precisa ser charmosa ou insana a ponto de me distrair do espectro do sofrimento em massa e da morte. No momento em que o poder da celebridade está em recuo, o poder real de entreter cresce.

Quero ver mais Patti LuPone cantando com o jukebox, e mais Yo-Yo Ma no violoncelo. Mais Anthony Hopkins tocando piano enquanto seu gato ronrona. Mais January Jones preparando um “cozido humano” na sua banheira, e mais Wendy Williams exibindo sua estátua de Betty Boop de 1,5 metro de altura, que ela pintou de preto com tinta spray. Quero ver mais dos coraçõezinhos desenhados por Stevie Nicks no anúncio manuscrito de que está refugiada com sua assistente e cachorros, ouvindo a música de Harry Styles.

Quero mais Britney Spears, que emergiu da crise como uma das raras celebridades a perceber a necessidade de uma mudança social radical. Spears postou recentemente no Instagram um manifesto em amarelo reluzente, da artista de internet Mimi Zhu.

“Alimentaremos uns aos outros, redistribuiremos a riqueza, atacar”, o texto diz. “A comunhão atravessa paredes”. Spears adicionou três rosas vermelhas à legenda, um símbolo ambíguo que representa ou seu apoio aos democratas socialistas da América ou uma simples afinidade por emojis florais.

É inesperado que Spears seja a figura a emergir para nos liderar na quarentena, mas justo que assim seja. Ela passou 12 anos sem o poder de administrar suas propriedades, com seus movimentos e finanças controlados por seu pai e supervisionados pelos tribunais. Quando ela posta sobre encontrar comunidade no cativeiro social, sabe do que está falando.

The New York Times

Tradução de Paulo Migliacci.