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Frente às novas tecnologias, pais incentivam crianças a resgatarem brincadeiras de rua

Reclusão pode levar a problemas de desenvolvimento corporal, social e até psíquico

Viviane Setaro e seus dois filhos, Enzo e Giovana

Viviane Setaro e seus dois filhos, Enzo e Giovana Rivaldo Gomes/Folhapress

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São Paulo

Pega-pega, amarelinha e queimada são brincadeiras que fazem parte do imaginário coletivo de vários adultos hoje em dia, mas que raramente são vistas nas ruas, fora de escolas e condomínios. Frente a este cenário, alguns pais se preocupam em incentivar seus filhos a ocuparem espaços ao ar livre para que eles se divirtam em grupo.

É o caso da psicopedagoga Viviane Setaro Baruchi, 45, que toda a semana leva os dois filhos Enzo, 11, e Giovana, 7, para brincar com sua turma de amigos em parques e ruas que fecham para carros aos domingos, em São Paulo.

“Quando a criança brinca de uma simples amarelinha, está fazendo um trabalho imenso na parte corporal dela e na criação de sua personalidade”, defende Baruchi. Ela afirma que os pais se preocupam mais com a formação da escrita da criança, e se "esquecem do brincar com ela, de levá-la para pisar na grama e na areia, desenvolvendo assim seu equilíbrio, conhecimento corporal, e interação com outras crianças e com a natureza".

"É importante resgatar essas brincadeiras para a formação da coordenação motora, da atenção e da imaginação –todos os pré-requisitos para a criança aguentar a sala de aula”, diz Baruchi.

A psicopedagoga afirma que muitos pais também não levam os filhos para fora de casa por medo da violência, mas que, na verdade, a insegurança sempre existiu e só parece se intensificar por conta das notícias ruins que chegam a todo momento. Ela mesma toma alguns cuidados quando sai de casa com os filhos, como vestir uma camiseta de cor mais chamativa e estar sempre de olho neles.

Nas regiões mais distantes do centro, diz Baruchi, você ainda encontra crianças andando sozinhas, mas conforme os bairros vão ficando mais elitizados, isso muda. “Em geral, as ruas normalmente não permitem mais essas brincadeiras pelo trânsito, mas os parques proporcionam esse espaço e cabe aos pais arrumarem tempo livre para seus filhos."

Segundo ela, os pais estão cada vez menos preparados para lidar com essas situações e encontram no celular e na tecnologia um “sossego” imediato, que pode ter consequências negativas –ela diz que já recebeu crianças em seu consultório que não conseguiam ficar em um pé só ou pular amarelinha, por exemplo.

 

INFÂNCIA VIGIADA

A psicóloga infantil Milene Matos, 50, também percebe essas mudanças no mundo contemporâneo. "Vemos cada vez mais crianças com menos recursos psíquicos para enfrentar os desafios da convivência. Nas clínicas, há crianças mais ansiosas e com dificuldade de dormir. Muitas estão tendo até dificuldade de interação e de linguagem."

Ela avalia que não só crianças, mas também adultos, têm saído cada vez menos de suas casas por conta das famílias serem cada vez menos numerosas. “Com menos crianças, essa companhia de ir para rua, com irmãos ou primos, diminuiu. Antigamente se vivia de uma forma mais comunitária e os vizinhos se conheciam."

A psicóloga diz que a tecnologia é, sem dúvida, um agravante dessa situação, e que os pais têm tido muita dificuldade de tirar as crianças de frente das telas –a oferta de programas hoje é muito maior e mais atrativa, diferente de antigamente, quando um único filme era exibido na televisão, em horário específico. "Existe uma economia psíquica quando se fica em frente à TV. Brincando na rua, ele terá que compartilhar o seu brinquedo e viver sob as regras da brincadeira. É um desafio." 

Matos também ressalta o problema da “infância vigiada”; da alta expectativa dos pais e o acesso cada vez maior sobre o que acontece nas escolas, por meio de câmeras e grupos de WhatsApp. Ela relembra de um caso em que uma criança de pouca idade entrou em um quadro depressivo por conta de uma única nota baixa, por exemplo. “Vemos isso com uma certa frequência: crises de angústia e até aumento de suicídio entre jovens. Achamos que essa é a geração mais bem preparada, por falar tanto desses assuntos, mas na verdade não é."

Baruchi também vê seus filhos mais vulneráveis com um celular e dentro do quarto, do que brincando ao ar livre. Ela ressalta que os pais se esquecem da violência interna, a exemplo do caso da "baleia azul", "jogo" que polemizou ao surgir nas redes sociais, que desafia participantes à automutilação e até ao suicídio.

"Muitos se preocupam em trabalhar para ter uma condição financeira melhor e assegurar uma boa escola, um brinquedo ou uma casa, e acabam esquecendo de ser presente”, diz Baruchi. "Muitas vezes, as crianças precisam até de um direcionamento porque não conseguem brincar sozinhas, justamente por estarem acostumadas aos celulares. Preciso falar ‘vai lá, pega isso, brinca disso’.”

NOSTALGIA COM OS FILHOS

O empreendedor Bruno Luiz Leibholz, 38, se preocupa em ser presente para sua filha Manuela, 4, e por isso a leva para brincar ao menos uma vez por semana em parques da capital paulista. A brincadeira, no entanto, também precisa ser sempre assistida. “A gente fica esperto. Na minha época, brincávamos na rua sem pai nem mãe, mas hoje já não dá”, diz Leibholz.

As brincadeiras mais frequentes para eles chegam a ser nostálgicas para alguns: tapa na peteca, jogar bola e andar de skate e carrinho de rolimã. “Estimula muito a adrenalina e alegria, vejo isso no rosto da Manuela. Fora o contato entre pai e filha, que fica muito mais próximo." 

Sempre que possível, a menina se junta aos primos da mesma idade para se divertir e esquecer que existe celular –a pequena Manu já disse que prefere a brincadeira ao ar livre e se sente melhor movimentando o corpo.

Pietra, 9, filha da vendedora Diana Coelho, 37, também prefere o mundo real ao virtual. “Eu gosto mais de brincar na rua. No celular a gente fica ali, parado, só assistindo às coisas e jogando joguinho. Na rua dá pra correr, fazer mais amigos, brincar. A gente se mexe mais", diz.

Moradoras de Guaratinguetá, as duas encontram maior segurança nas ruas menos movimentadas do município do interior paulista. “Tem bastante criança na rua por aqui. Elas saem da escola e brincam de capoeira, pega-pega, amarelinha, esconde-esconde, queimada...", diz Coelho. “Minha geração brincou mais, e agora estou passando isso para ela."

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