Saiu no NP

Aids muda hábito sexual em SP e alavanca masturbação e filme pornô

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"O segredo da Aids, misteriosa enfermidade mortal que desatou uma onda de pânico entre homossexuais, hemofílicos e viciados em drogas de todo o mundo, encontra-se na África Central."

As conclusões acima são de um congresso feito pela Associação de Pesquisa do Câncer, na França, em outubro de 1983. O evento ganhou destaque no "Notícias Populares", que revelou que o Sarcoma Kaposi, um tipo de câncer subcutâneo de pacientes terminais com Aids, na região central do continente africano, era a grande esperança dos cientistas de descobrir a cura da "síndrome".

O "Saiu no NP" de hoje relembra parte da cobertura do diário paulista sobre a Aids durante a década de 1980, período em que o vírus começava a ser conhecido pela comunidade científica e pela população em geral.

Sabe-se que a Aids ataca o sistema imunológico prejudicando a defesa natural do organismo contra outros males ou infecções. A enfermidade pode ser transmitida por meio de relações sexuais sem proteção, transfusão de sangue contaminado ou por meio do compartilhamento de seringas ou agulhas infectadas durante o uso de determinadas drogas.

Cercado de mistérios, tabus e preconceitos, o surgimento do vírus da imunodeficiência humana, o HIV, foi acompanhado pelo jornal, que dedicou mais de 90 chamadas de capa ao assunto entre 1983 e 1985.

Atento às descobertas científicas da época, o "Notícias Populares" publicou suas primeiras reportagens sobre o HIV já em 1980. Uma chamada de capa em junho do mesmo ano destacava: "Doença misteriosa mata só mulheres". A reportagem intitulada "Moléstia misteriosa está matando nos E. Unidos" relatou os 50 casos descobertos pelo Centro de Controle de Moléstias de Atlanta. O diretor da entidade, William Foge, declarou que a causa da doença era desconhecida, mas que seus sintomas assemelhavam-se a uma série de enfermidades em que as bactérias produziam uma toxina que caía na corrente sanguínea dos infectados. "Por causa desta possível associação com a toxina é que a doença foi chamada de 'Síndrome de Tóxico e Choque'", relatou o especialista.

Crédito: José Luis da Conceição - 4.nov.85/Folhapress
Portador do vírus HIV com Sarcoma Kaposi, que pode causar manchas na pele de pacientes com estágio avançado da doença

Como a maioria dos casos eram descobertos através da menstruação, os eventos foram prontamente ligados ao sexo feminino. Inicialmente associada às mulheres, pouco a pouco a divulgação de casos entre homens, especialmente os homossexuais, foi ganhando atenção da população, o que levou a Aids a ser popularmente conhecida na ocasião como a "peste gay".

Não foi raro ver no "Notícias Populares" chamadas que refletiam a consciência sobre o tema na época. Títulos como "Peste gay é a epidemia do século" (30.ago.1983) ou "Peste gay matou 80% das vítimas" (22.set.1983) poderiam ser lidas com frequência num momento cujo nível de informação sobre o assunto era limitado. Por outro lado, em maio de 1983 -quando o jornal publicou a descoberta da raiz da Aids, que era um vírus-, as reportagens expunham as reações negativas e o preconceito com relação aos doentes. "O fenômeno adquiriu tamanhas proporções, que algumas seitas religiosas norte-americanas lançaram uma campanha de inusitada violência contra os homossexuais, cujo lema principal é que a síndrome é uma vingança divina'", informou o "NP" em 7 de maio de 1983.

O jornal também desvendou ou publicou alguns mitos sobre a doença. Manchetes como "As lágrimas também transmitem a peste gay" (17.ago.1985), "Ovelha transmite vírus da peste gay" (23.ago.1985) e "Lama milagrosa de Mauá pode curar câncer e Aids" (7.out.1985) retrataram as crendices populares sobre a "moléstia do século".

Em relação aos casos de Aids no Brasil, as primeiras reportagens datam do começo dos anos 80 e noticiavam vítimas fatais da doença na capital paulista. "9 mortos pela peste gay em São Paulo", de setembro de 1983, divulgava o número de infectados no país, 13, ao mesmo tempo em que alertava para os perigos da falta de informação sobre o tema ao afirmar que "o silêncio agrava a situação".

O agravamento da epidemia pôde ser notado nas capas do "NP". Em maio de 1985, o diário já noticiava que o número de mortos em SP era mais de 100. Ao final do mesmo ano, o "Notícias Populares" publicava que o Brasil era o país com mais infectados do mundo, atrás somente dos EUA.

Os desafios da saúde pública, que enfrentava a ausência de estrutura para lidar com a questão em plena ascensão no Brasil, também foram temas de reportagens como "Médicos se preocupam com o vírus gay" (23.ago.1983), "Hospitais estão sem leitos pra doentes com peste gay" (29.jun.1985) e "Funcionários de hospitais apavorados com a peste gay" (17.jul.1985). Nesta última, em especial, a declaração de um médico infectologista do Hospital das Clínicas sobre suspeitas de que duas faxineiras teriam contraído o vírus após manusear agulhas de doentes provocou medo no meio de profissionais da área.

Ainda tratada como "sentença de morte", a Aids era acompanhada de muitos tabus. O "Noticias Populares" trouxe também o cotidiano de muitos doentes. O dia a dia, as dificuldades, os preconceitos e as vitórias de quem era portador do vírus podiam ser constantemente lidas nesse período.

Ao saber que tinha Aids no dia de seu aniversário, Luis (nome fictício) não deixou de comemorar a data em que completaria pouco mais de 30 anos. Agredido por ser portador do vírus HIV, o entrevistado narrou seu sofrimento com a doença e com o preconceito. Apesar do apoio dos amigos, a família o abandonara. "Atenção senhores e senhoras! Tenho Aids diagnosticado há dois anos e meio e estou vivo", protestou Luís, em entrevista exclusiva para o "NP" em maio de 1985.


Ao mesmo tempo, o jornal traduzia o vocabulário médico para seus leitores, que, aos poucos, assistiam ao crescimento do número de casos da doença. Na coluna diária do "Notícias Populares", intitulada "Espaço gay", de Julian Gray, o periódico chamava a atenção para o fato de que, sem prevenção, qualquer um poderia contrair o vírus. Crianças, mulheres, heterossexuais, "astros do cinema", padres e até freiras, qualquer um poderia virar notícia relacionada à doença que assolava o mundo e cuja cura parecia impossível.

Sem solução a vista, o remédio era a prevenção, que foi introduzindo novos costumes entre a população. O "medo da doença muda hábitos sexuais" foi tema do "NP" em 13 de outubro de 1985, quando relatou o comportamento do brasileiro diante da doença. Com receio de contato físico, a "masturbação é a saída que não oferece perigo", indicavam os entrevistados.

Além da masturbação, filme pornô também era a "tábua de salvação". De acordo com o "NP", a venda de produtos eróticos havia crescido 30% nos últimos meses, ao mesmo tempo em que, em boates, casas de massagens e nos "inferninhos", o movimento caía. "Os bofes se afugentaram de nós, passam assanhados pelos carros, mas nem se arriscam a dar a mão", protestou um travesti na "boca do lixo", no centro de SP.

Apesar do "NP" informar a cura da Aids em abril de 1985, com o surgimento de substâncias capazes de ajudar o sistema imunológico, a comunidade científica até agora não encontrou a solução definitiva para o problema. Porém, desde os anos 80, quando o Brasil apresentou índices alarmantes da enfermidade, a descoberta de medicamentos antirretrovirais tem contribuído significativamente para impedir a multiplicação do vírus HIV no organismo.

Desde 1996, o sistema público de saúde no Brasil distribui gratuitamente esses medicamentos, popularmente conhecidos por "coquetel".

Em 2013, existiam 490 mil brasileiros com o HIV, conforme números da Unaids (órgão especial da ONU para a Aids). E, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde, mais de 35 milhões de pessoas em todo o mundo estão atualmente infectadas.

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