Saiu no NP

Cachaça "batizada" mata na Bahia e no Piauí

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Em 22 de julho de 1990, a seção "Raio-X das Cidades", publicada no jornal "Notícias Populares", contou um trágico episódio ocorrido no Povoado do Tabuleiro, bairro do município de Santo Amaro, a 67 km de Salvador (BA). Relatos levavam a crer que as mortes de dez moradores da região teriam sido causadas pela ingestão de uma pinga "batizada" com um produto extremamente tóxico. Outras seis vítimas estavam hospitalizadas.

As mortes foram repentinas e os sintomas os mesmos: fortes dores no estômago, vômitos, cegueira e desmaios. De acordo com o delegado de Santo Amaro, Antônio Gervásio de Castro, pelo menos seis dos dez mortos tinham histórico de alcoolismo. Tamanha calamidade deixou em alerta as cidades vizinhas, pois, se confirmada a suspeita da mistura, haveria o risco de um aumento expressivo no número de mortos.

O "Notícias Populares", por sua vez, advertiu sobre o perigo que a aguardente maligna poderia trazer a quem a consumisse: "Cuidado, um aperitivo para abrir o apetite pode muito bem fechar a sua boca para sempre".

Crédito: Folhapress
Chamada na primeira página do "Notícias Populares" de 6 de agosto de 1990 sobre as vítimas da cachaça assassina

Sob o título "Pinga assassina pode chegar a São Paulo", a reportagem do "NP" alertava sobre a possibilidade da entrada da aguardente envenenada na capital paulista, uma vez que caminhoneiros e revendedores eventualmente transportavam cachaça daquele município para a Grande São Paulo.

O jornal relatou que o então secretário da Saúde de Santo Amaro, Dalmar Soares, dissera que os sintomas apresentados pelas vítimas foram os mesmos encontrados em pessoas intoxicadas por álcool metílico, mais conhecido por metanol, produto altamente perigoso. Ainda segundo o secretário, alguns fabricantes de pinga da região tinham como estratégia adicionar álcool comum na bebida como forma de aumentar o seu volume. Porém, dessa vez teriam acrescentado metanol em vez do produto usual.

Mesmo sendo uma suposição, a prefeitura da cidade baiana decidiu adotar a lei seca como medida preventiva e proibiu qualquer estabelecimento de vender bebidas alcoólicas.

Para o delegado Antônio Gervásio, a hipótese era a de que a misteriosa pinga tivesse sido mesclada criminosamente com soda cáustica ou água sanitária, produtos usados por alguns fabricantes para aumentar a acidez e disfarçar o teor de água da bebida.

Entretanto, o "NP" apurou que a causa mais provável da tragédia era a de que a pinga tivesse sido armazenada em tambores que antes haviam sido usados para a guarda de agrotóxicos, assimilando, assim, o defensivo agrícola. Isso porque, parte dos produtores de pinga do Povoado do Tabuleiro, por economia ou ignorância, às vezes estocava a cachaça em latões em vez de tonéis de madeira, como manda a segurança e as técnicas de envelhecimento de bebidas alcoólicas.

No dia 23 de julho, um pequeno texto intitulado "Metanol suja pinga maluca" confirmava a suspeita levantada pelo secretário Dalmar Soares. O Centro Antiveneno do Hospital Roberto Santos, de Salvador, encontrara substâncias do metanol na urina de algumas vítimas.

A investigação policial resultou na localização de seis latões contendo aguardente na casa de Edvaldo Gomes Sales, um dos principais distribuidores de pinga da região. Em um dos latões apreendidos havia um rótulo que identificava o seu conteúdo: "álcool metílico metanol". Gomes estava foragido.


Veiculada pelo "NP" em 24 de julho, a reportagem com o título "Cachaça assassina mata mais 3" anunciava outros três óbitos ocasionados pela "pinga assassina", dois no Povoado do Tabuleiro e um na região de Acupe, outro bairro do município de Santo Amaro. Com isso, o número de mortos chegava a 14.

O delegado Antônio Gervasio de Castro afirmava que as mortes poderiam aumentar devido ao alto consumo de pinga na região. Para tentar evitar o pior, a polícia e a vigilância sanitária continuavam percorrendo alambiques e mercearias do município baiano à procura de mais bebidas adulteradas. Até aquele momento, cerca de 2.000 litros haviam sido recolhidos para análise.

Dias depois, Edvaldo Gomes Sales, que estava foragido, se entregou à polícia. Ele assumiu ser o responsável pela distribuição da aguardente no município baiano e afirmou que, no dia 30 de junho de 1990, havia comprado 3.600 litros de álcool na Sasil Indústria Química. Edvaldo disse à polícia que uma parte do álcool metílico comprado na Sasil foi adicionada por ele a 1.200 litros de cachaça. Mas afirmou que não tinha conhecimento de que o produto fosse metanol. Para ele tratava-se de álcool etílico comum e ainda acusou a empresa pela venda equivocada do produto. O presidente da Sasil negou as acusações.

A edição de 2 de agosto do "NP" noticiou mais seis mortes, agora no Estado do Piauí. Os óbitos ocorreram no município de Amarante e os sintomas eram os mesmos apresentados pelas vítimas de Santo Amaro, na Bahia. Conforme os relatos do então prefeito do município piauiense, João de Miranda Peixoto, a cachaça vendida na cidade também vinha da Bahia. Porém não sabia de qual localidade.

Crédito: Folhapress
No dia 2 de agosto, a cachaça assassina é novamente destaque na capa do "NP", agora com mortes no Piauí

A Prefeitura de Amarante, assim como a de Santo Amaro, deu início ao processo de recolhimento das cachaças da região para investigações. Enquanto um dos médicos do Hospital Estadual de Amarante, Jairo Prado, afirmava que todos os contaminados tinham antecedentes de alcoolismo, a reportagem do "NP" destacava que "O povo, amedrontado, até parou de beber".

No dia 6 de agosto, reportagem do "NP" informava sobre a internação de mais seis pessoas no Hospital Roberto Santos, em Salvador, por ingestão da "pinga maldita". Com as novas vítimas o número de hospitalizados chegava a 15. Àquela altura a cachaça já havia penetrado em vários municípios do interior baiano.

A última reportagem sobre o assunto foi publicada em 7 de agosto de 1990 com o título "Cachaça assassina à solta". O texto, que informava que o número de mortos em decorrência do consumo da pinga adulterada era de 24 e que o de hospitalizados passava de 15, anunciava o fim da lei seca vigente na cidade baiana.

Mas, o que poderia parecer uma boa notícia para aqueles que esperavam poder tomar sua pinguinha sossegados, acabou ressaltando o perigo que ainda pairava no ar: "É bom que os consumidores saibam disso: a aguardente de Santo Amaro não tem nome, nem rótulo de identificação. É quase sempre vendida misturada com ervas apelidadas de 'fubuia' e 'incha-pé'". Com esse alerta o "Noticias Populares" encerrou a cobertura da "cachaça assassina".

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