Saiu no NP

Banho de sangue no Carandiru deixa 111 mortos

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O jornal "Notícias Populares", que em 2013 comemorou 50 anos de sua primeira edição, publicou importantes fatos do país. O "massacre" do Carandiru, que resultou na morte de 111 presos após invasão da Polícia Militar na Casa de Detenção em São Paulo no dia 2 de outubro de 1992, foi um deles.

De acordo com relatos oficiais, a ação no presídio fora motivada por uma briga de presos, de duas facções rivais, no campo de futebol. Ao se espalhar para o pavilhão, a contenda tomou maiores dimensões. Para a polícia, a ameaça de rebelião provocou a intervenção da Rota e da Tropa de Choque, que invadiram o recinto com cães e armamento para reprimir a agitação. A ação, que durou cerca de 30 minutos, provocou a morte de dezenas de detentos e se tornaria uma das maiores crises da história da Secretaria da Segurança Pública do Estado de SP.

Crédito: Sérgio Andrade - 4.out.1992/Folhapress
No IML, corpos dos presos mortos pela polícia durante o massacre do dia 2 de outubro de 1992 no Carandiru

O conflito no presídio tomou a imprensa em geral e virou destaque no "NP", que dedicou ao Carandiru exatos 12 dias consecutivos só de primeira página. Mesmo mantendo a linguagem coloquial que marcou a história do diário, seu tom bem-humorado tão característico articulou-se a um jornalismo com prestação de serviço e compromisso com a liberdade de expressão.

A invasão da polícia no Pavilhão 9, porém, teve tímida repercussão no "NP" do dia seguinte. No sábado, na seção "RX das Cidades", a chamada ocupou só duas colunas de jornal, que relatou o caso como "rebelião mata 8 no Carandiru."

Já a partir do domingo a cobertura subiu o tom. Com a capa intitulada "Massacre de Presos na Detenção!", o "NP" entrou de vez no caso e falou no "maior massacre que já ocorreu num presídio". A reportagem deu especial atenção ao número de vítimas, à descrição de testemunhas que tiveram acesso ao local logo após a invasão das tropas e aos relatos dos parentes que, sob atenta escolta policial, aguardavam do lado de fora da cadeia por informações.

Enquanto José Luís da Conceição, então fotógrafo do "NP", era censurado e detido por policiais, que procuravam dificultar a apuração da imprensa, os jornalistas tentavam colher as várias versões do caso, polarizadas de um lado pelo governo do Estado de São Paulo, na época chefiado por Antônio Fleury Filho e que falava em "8 mortos", e de outro por parentes de vítimas, que diziam haver mais de 300 óbitos.

Após repórteres do "NP" conseguirem entrar no necrotério para onde foram levados os corpos e verem o estado dos mortos, o jornal reagiu por meio de um editorial, lançado na segunda-feira, dia 5. O diário condenou o "massacre" e culpou o poder público pela "chacina". Intitulado "Vergonha!", o texto criticou a conduta das tropas de segurança e chamou o evento de "Holocausto da Detenção".

Nos dias seguintes, a reportagem acompanhou as investigações, o processo de identificação dos corpos e tentou esmiuçar o que ocorreu no Pavilhão 9, até com testemunhos de sobreviventes e funcionários da Casa de Detenção.

Crédito: Folhapress 1. Ditinho e Salvador tentam fugir, mas Ditinho quebra a perna; 2. Ele é recapturado e torturado por guardas; 3. Ditinho é jogado numa cela sem atendimento médico; 4. Presos se revoltam
1. Ditinho e Salvador tentam fugir, mas Ditinho quebra a perna; 2. Ele é recapturado e torturado por guardas; 3. Ditinho, com uma fratura exposta na perna, é jogado numa cela; 4. Presos se revoltam devido à falta de atendimento e de comida ao colega ferido

Passada quase uma semana, o "NP" divulgou na capa do dia 8 os primeiros estudos de opinião sobre a repercussão da ação no presídio. Com o título "Massacre na cadeia divide o povão", pesquisa do Instituto Datafolha realizada em São Paulo com 1.080 pessoas apontou que 53% da população se posicionou contra a atuação da PM no dia da invasão. Já 29% se colocaram a favor da intervenção, ao passo que o restante não soube responder.

Com a chamada "Amigos da Rota atrapalham o trânsito", o diário publicou em 10 de outubro de 1992 manifestações em apoio ao trabalho da tropa de elite da Polícia Militar de São Paulo no Pavilhão 9. A primeira página destacou que cerca de 500 pessoas protestavam em frente à sede do Batalhão da Rota, na zona norte de São Paulo, e pediam a volta dos comandantes afastados pelo governo estadual após o escândalo.

Em "Eu amo a Rota", publicado em 15 de outubro, entrevistados defenderam a corporação e alegaram que não houve chacina dentro do presídio. As autoridades do governo, como Pedro Franco de Campos, secretário da Segurança Pública do Estado, e o coronel Hermes Bittencourt Cruz, comandante da polícia, ocuparam quase que diariamente as páginas do jornal. Para eles, os policiais só reagiram à investida dos presos.

Contrariando a versão oficial, os parentes dos mortos também tiveram espaço. Com a manchete "NP dá uma força aos parentes", o jornal anunciou ajuda às pessoas afetadas pela "chacina". O periódico chegou até a disponibilizar as dependências de sua redação para assessorar os parentes que desejavam solicitar indenização ao Estado pelos danos sofridos.


A experiência vivida no Pavilhão 9 era relatada aos jornalistas por meio dos poucos parentes que tiveram acesso aos sobreviventes. "Preso forçado a mergulhar no sangue aidético"; "PM metralha até preso que não andava" ou "111 corpos mutilados com balas e dentadas de cães" foram algumas das chamadas de capa baseadas em declarações de familiares dos detentos.

Não é difícil encontrar no "Notícias Populares" da época o estilo único com o qual tratou os fatos, como em "Tomou 7 tiros e não morreu", sobre um prisioneiro que "tomou uma chuva de chumbo e está inteiro", e "Traçou a irmã no Pavilhão 9", que relata a história de um detento morto que teria tido quatro filhos com sua irmã.

Outras capas dos primeiros 12 dias de cobertura se caracterizaram pela mistura entre a crítica, a informalidade e a ironia. Em "Pena de morte no Pavilhão 9", do dia 11, o diário revelou um raio-x do setor, que na ocasião era ocupado especialmente por presos cujos casos nem sequer haviam sido avaliados pela Justiça.

A informalidade pôde ser vista na capa publicada de 7 de outubro, que chamou a atenção para o "tresoitão que pega bem no coração"; para o "tiro que racha um cara em dois" e para a metralhadora que "estraçalha 20 de uma vez só". Por fim, o "NP", para revelar que cães da PM foram utilizados para atacar os presos, publicou "Bestas da PM matam sem dó".

Crédito: Rogério Albuquerque - 3.out.1992/Folhapress
Policiais com cães escoltam familiares que buscavam informações das vítimas após o massacre em SP

Ao final da cobertura, o diário surpreendeu ao publicar mais um editorial sobre o caso. Os 12 dias de capas sobre o Carandiru se encerraram com o artigo do dia 15 chamado "Contra a Violência". Em tom bastante formal, o "NP" condenou os métodos da polícia para reestabelecer a ordem na Casa de Detenção, dizendo que "não se pode admitir que a violência, a barbárie e a absoluta falta de escrúpulos tomem conta da atividade policial".

Por fim, o julgamento do massacre ultrapassou o tempo de vida do "Notícias Populares", que deixou de circular em 2001. Em 2013, foram proferidas as primeiras sentenças para o caso. Em abril, 23 PMs foram condenados a 156 anos de prisão. Já em agosto, 25 policiais da Rota foram condenados a 624 anos de prisão em razão da morte de 52 presos _todos recorrerem em liberdade. E muitos dos acusados pelos óbitos ainda não chegaram ao final de seus respectivos julgamentos.

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