Música

Maestro João Carlos Martins troca celebração de aniversário no Carnegie Hall por live

Músico diz que é possível ter anseios aos 80 anos: 'Não é a linha de chegada'

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São Paulo

Enquanto o nhoque de mandioquinha preparado por Carmen não fica pronto para o almoço, o maestro João Carlos Martins segue a sua incansável rotina de treinos à frente de seu inseparável companheiro: o piano. “Olha o que eu tô fazendo!”, diz o empolgado músico, por videoconferência, enquanto toca o concerto nº 5 de Beethoven —popularmente conhecido como o Concerto do Imperador.

A sala de estar do apartamento nos Jardins tem sido o local preferido de João —como gosta de ser chamado— ao longo dessa quarentena. Sem sair de casa há mais de três meses, ele passa de seis a sete horas diárias praticando seu instrumento favorito.

Com tamanha disposição, o maestro completou seu 80º aniversário na última quinta-feira (25) e fez um espetáculo virtual, que agora está disponível na íntegra no canal do YouTube do músico. Apesar da data festiva, ele prefere denominar a live de outra forma. “Em 80 anos, eu nunca celebrei meu aniversário. E não vou celebrar agora (risos). Eu vou fazer um concerto, prefiro assim”, brinca.

Além de passear por clássicos de Johann Sebastian Bach, Ludwig van Beethoven, Wolfgang Amadeus Mozart, Nino Rota, Villa Lobos e Tom Jobim, João regeu uma pequena formação de sua Bachiana Filarmônica SESI-SP e contou com participações dos solistas Davi Campolongo (piano), Anna Beatriz Gomes (soprano) e Jean William (tenor). Ao longo do ao vivo foram transmitidas homenagens de amigos como Walter Casagrande, Tom Cavalcante e Alexandre Nero.

Antes da pandemia do novo coronavírus a apresentação seria no Carnegie Hall, em Nova York, Estados Unidos, no dia 18 de outubro deste ano, para comemorar os 60 anos de sua estréia no local e, mesmo que tardiamente, o seu aniversário. Agora, o espetáculo presencial foi adiado para o ano que vem, no dia 17 de outubro.

O maestro, que pretende seguir regendo e tocando nos palcos ao redor do mundo, também revela o seu principal objetivo para os próximos 20 anos: “Realizar o sonho de [Heitor] Villa-Lobos: fechar o Brasil em forma de coração por meio da música. Quero uma maior democratização da música clássica para que ela alcance todos os segmentos da sociedade no país”, comenta.

Engana-se quem pensa que as oito décadas completadas são motivo de desânimo para o pianista. Muito pelo contrário. “Procuro mostrar para as pessoas que com 80 anos você pode ter anseios na vida. Não é a linha de chegada, pode ser o ponto de partida”, fala. “Com a idade você consegue enxergar tudo com mais clareza, corrige os erros e aprimora as qualidades”, completa.

As 24 cirurgias que precisou enfrentar ao longo da vida, incluindo nas mãos esquerda e direita, o braço e até mesmo o cérebro, além das intensas dores —que sentia desde o dia que caiu sobre uma pedra jogando bola no Central Park, em Nova York, em 1965, o primeiro de uma série de acidentes— não fizeram o músico baixar a cabeça.

“Muita gente fala que meu caso é de superação, mas não, é um caso de teimosia. Acredito que quando a pessoa nasce, é como uma flecha: ela precisa chegar no destino e pode ter desvios. Mas é preciso conduzir aquela flecha até o seu destino. Eu recebi um dom de Deus e sempre tive como missão na minha vida transmitir minha emoção para o público. Para alcançar essa missão sempre conduzi da mesma forma: com a disciplina de um atleta e a alma de um poeta”, ressalta.

E essa vitalidade foi renovada durante o confinamento pela possibilidade do músico poder encostar os dez dedos nas teclas do piano novamente após 22 anos por causa de uma luva biônica. “Eu acordo e, nos primeiros 5 minutos, eu penso: ‘Meu Deus, como eu tô velho, mas tô vivo!’. (risos) Depois disso eu sou um garoto de 20 anos, com uma garra dos diabos para estudar”, comemora.

Aqueles olhos que outrora assistiam as ligeiras mãos fazerem 21 notas por segundo, depois a impossibilidade de tocar sequer uma nota, a superação utilizando os polegares e que, por fim, decoraram exaustivas 150 partituras, agora acompanham maravilhadas o intenso movimento dos calejados dedos, que revivem as rapsódias húngaras de Franz Liszt e a grandiosa “Clair de Lune”, do francês Claude Debussy.

“Eu não vou ser o pianista que eu era antigamente, a minha mobilidade não é mais a mesma, mas pude voltar a ter o prazer de tocar em casa e reviver o contato com meu amado piano”, ressalta o músico, que moldou sua rotina para viver intensamente a música.

“Antes eu estava realizando uma série de concertos e viagens. Agora na quarentena, apesar de acompanhar com tristeza o que acontece no mundo, tenho a possibilidade de me aperfeiçoar na música. O dia é muito curto para mim. Acordo cedo, começo a estudar com o pijama, ao meio-dia tomo banho e troco de pijama, volto a tocar e, à noite, ponho outro pijama para dormir”, conta João, que passa a quarentena ao lado da mulher —e maior incentivadora— Carmen e, como brinca, de outras duas “funcionárias”: a máquina de lavar e de secar.

As lives também acompanham o seu dia a dia. Além das musicais —entre as quais elogiou a de Luan Santana e de Ivete Sangalo— e das humorísticas do amigo Tom Cavalcante, o músico tem acompanhado outras com discussões sobre os mais diversos assuntos, refletindo principalmente o mundo do pós-pandemia. “Essa vida após o coronavírus vai ensinar o mundo a diminuir a desigualdade.”

Apesar de preferir manter o hábito de não falar sobre política, João criticou a forma com que a área cultural tem sido conduzida e acredita que uma simples medida poderia ter aliviado as complicações no setor.“

O governo, quatro dias depois de fechar os teatros e as casas de shows, deveria ter feito uma medida provisória transformando a Lei Rouanet de presencial para virtual durante a pandemia. Assim, teriam mais lives para que aquele cara de quinto escalão, que trabalha na produção e passou a não receber um centavo, pudesse continuar com o salário dele”, afirma o maestro, que mesmo vendo uma fase complicada na cultura, acredita em uma recuperação futura.“

Atualmente a cultura passa por um período difícil, mas, no final, a cultura e as artes acabam vencendo. Estamos em uma época que precisamos cuidar do corpo, da saúde, ainda mais com esse inimigo invisível, mas jamais podemos deixar de tratar da alma. E tratar da alma é através das culturas e das artes”, completa.

A conversa de mais de uma hora termina com um tema imprescindível na vida de João Carlos Martins: a paixão pela Portuguesa. “Eu continuo torcedor da Lusa e, mesmo que o time estivesse jogando na várzea, eu faço questão de parar meu carro no acostamento da Marginal e acompanhar a partida do alambrado!”, diz.

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