Fofices

Bonecos ajudam japonesa a sobreviver em ilha quase inabitada

Mulher faz espantalhos de pessoas que se foram e 'repovoa' aldeia

Ayano-san se tornou uma espécie de celebridade, com pessoas de todo o mundo viajando para sua aldeia para ver seus espantalhos
Ayano-san se tornou uma espécie de celebridade, com pessoas de todo o mundo viajando para sua aldeia para ver seus espantalhos - Sourcenext/ Alamy Stock Photo
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Descrição de chapéu BBC News Brasil
Don George

Eu começara a explorar o coração de Shikoku, a menor e menos visitada das quatro principais ilhas do Japão. Dirigia tenso com meu carro alugado pela estrada de mão única por um vale montanhoso em direção a uma famosa ponte de ramos de videira. Segui por um vilarejo aparentemente deserto com uma dúzia de casas empoleiradas precariamente em palafitas de metal sobre um rio, virei à esquina e vi à distância três figuras apoiadas contra um poste de eletricidade.

Eles usavam botas de borracha, calças e blusões feitos de um tecido rústico e luvas brancas. Capacetes de beisebol cobriam suas cabeças. Mas algo parecia estranho em suas posturas. Eles não pareciam muito humanos. Quando cheguei perto, percebi que, de fato, não eram humanos. Suas caras eram feitas de um tecido branco rechonchudo, com botões no lugar dos olhos e linha preta compondo as sobrancelhas.

Cinco metros adiante, notei outra figura de tamanho humano empurrando um carrinho de mão em um terreno, depois outra puxando ervas daninhas, e mais cinco sentadas no banco de um ponto de ônibus.

Já me perguntava em que realidade alternativa eu tinha entrado quando notei outra figura adiante na beira da estrada. Essa também era extraordinariamente real, vestida com tênis preto, calça e blusa cinza, luvas e a cabeça escondida sob um chapéu. Voltei meus olhos para a estrada e parei abruptamente. Aquela figura deu um passo! E outro!

Estacionei e caminhei cautelosamente em direção à figura encapuzada, não muito certo de quem ou o que eu estava prestes a encontrar.

"Com licença", falei. A figura pareceu não ouvir. "Com licença", gritei, muito mais alto. A figura parou e lentamente se virou.

Uma face humana apareceu —calorosa, corada, enrugada e afável, com olhos minúsculos e brilhantes. "Sim?", a voz de uma mulher respondeu em japonês.

"Com licença, mas poderia fazer uma pergunta?"

"Sim, claro".

Andei em sua direção e apontei para as figuras nos dois lados da estrada. "Você sabe quem criou estas criaturas maravilhosas?"

Ela me olhou atentamente por um momento. Depois disse com um sorriso: "Fui eu!"

Foi assim que conheci Ayano Tsukimi, a mestre dos espantalhos de Shikoku. O ano era 2013, e eu estava desbravando o quase impenetrável verdejante Vale de Iya, uma região remota no nordeste da ilha onde há apenas meio século estradas começaram a ser pavimentadas.

Minha mulher nascera e crescera em Shikoku, e meu cunhado comentara sobre o Vale de Iya, dizendo que era um lugar rústico com casas com telhado de palha, campos de cevada, pontes de ramos de videira e um modo de vida tradicional —mas ele não mencionara nada sobre figuras parecidas com humanos.

Ayano-san caiu na gargalhada com o espanto em meus olhos.

"Posso lhe perguntar sobre elas?", questionei.

"Claro!", ela respondeu. "Você gostaria de um pouco de chá?"

Passamos por dois meninos —quer dizer, figuras de meninos— brincando em uma bicicleta enferrujada, e uma mulher sentada em um galpão, de costas para a estrada. Ayano-san me conduziu por um caminho até sua humilde casa. Sentados ao lado da porta, havia meia dúzia de outras figuras: uma menina de uniforme escolar; uma mãe com um bebê no colo; e um senhor de terno segurando um cigarro.

Tirei meus sapatos e entrei em um cômodo revestido de tatame onde havia outras de suas criações, incluindo um casal vestido com kimonos tradicionais de casamento, ambos formalmente em pé no final da sala. Eu me senti como um personagem de "Além da Imaginação", a série de ficção científica dos anos 1950 com elementos sobrenaturais e ocorrências inexplicáveis.

Ayano-san pediu que eu me sentasse no tatame ao lado da tradicional lareira de irori e, em seguida, foi preparar o chá. Ela voltou com uma pequena bandeja de verniz com duas xícaras e colocou uma delas cuidadosamente diante de mim.

Eu me curvei agradecendo, e ela me mirou com os olhos brilhando: "Eles são bastante incomuns, não são?"

"Sim, eles realmente são. Por favor, me fale sobre eles".

"Bem", ela começou. "Eu cresci aqui, mas fui para Osaka com meus pais quando estava no ensino médio. Eu vivi lá algum tempo, casei e tive filhos. A certa altura, meus pais voltaram para cá e então, quando minha mãe faleceu, vim cuidar de meu pai. Isso foi em 2002. Foi quando fiz o primeiro kakashi..."

Eu a interrompi: "Desculpe, mas que palavra é essa?"

"Kakashi. As figuras que os fazendeiros usam para espantar os pássaros de suas plantações ".

"Ah, kakashi!" Espantalhos.

"Fiz o primeiro kakashi para espantar os pássaros. Notei que eles estavam comendo as sementes naquele terreno lá", disse apontando para fora da porta. "E eu queria espantá-los.

"Fiz mais alguns com esse fim. Mas quando nossa vizinha faleceu, senti sua falta, porque costumávamos conversar todos os dias. Então eu fiz um espantalho que parecia com ela, para que eu pudesse continuar a cumprimentá-la todas as manhãs."

"Com o tempo", ela continuou, com um encolher de ombros e um suspiro, "outros moradores morreram. Eu comecei a fazer espantalhos para recordar (os agricultores que tinham morrido) e de alguma forma mantê-los vivos".

Ela fez uma pausa. Eu tomei um gole de chá e esperei. Ela apontou para uma figura sentada no tatame atrás de mim, uma mulher de aparência sábia com cabelos de fios grossos, grisalhos e trançados, vestida com um elegante quimono cinza. "Esta é minha mãe. Eu falo com ela todos os dias", disse ela. "Você gostaria de dar um passeio?"

Nós andamos por alguns minutos descendo a estrada em direção a um imponente edifício de concreto com dois andares atrás de um pátio sujo. "Isso costumava ser a escola primária", contou. "Mas com o passar dos anos, o número de alunos diminuiu até que, no ano passado, ela foi fechada. Agora todos os alunos da área estudam em uma escola a 30 minutos de ônibus".

Não havia pesar em sua voz; ela estava simplesmente constatando os fatos. "Entre!", exclamou, já abrindo a porta da escola.

ESPANTALHOS POR TODA PARTE

Enquanto caminhávamos, mal pude acreditar no que via. Espantalhos estavam por toda parte. Um chefe-espantalho supervisionava o corredor, professores-espantalhos estavam reunidos em uma sala e, em outro cômodo, 20 crianças-espantalhos estavam sentadas obedientemente em suas mesas, com livros abertos, mirando seriamente a professora-espantalho na frente da sala. Na lousa atrás dela, estava escrito "Meu futuro sonho" - o equivalente japonês de "O que eu quero ser quando crescer".

Quando terminamos nosso tour, o sol estava se pondo. Eu precisava voltar para o meu hotel antes de escurecer, então agradeci apressado e prometi que voltaria.

Dirigindo de volta pela estrada sinuosa, eu estava repleto de sentimentos profundamente misturados. Por um lado, havia algo incontestavelmente inquietante nas figuras, especialmente nas crianças da escola, que pareciam personagens de um filme de terror prestes a ganhar vida. Mas, por outro lado, havia um calor em Ayano-san e uma pungência em sua história.

Um ano depois, em um dia ensolarado de primavera, voltei. Desta vez, conduzia um grupo de oito americanos para a ponte de videira e, quando chegamos a Nagoro, a aldeia do espantalho, pedi ao motorista da minivan que parasse. Ayano-san estava de pé na frente de sua casa.

"Olá, Ayano-san!", gritei acenando do lado de fora do veículo.

Ela olhou para mim, intrigada. Então olhou mais de perto. "Ah, bem-vindo de volta!", replicou. Ela nos convidou a entrar em sua casa para apresentar suas criações.

Por um ano me perguntei como ela fazia aquelas figuras. Finalmente, tive a chance de perguntar.

Leva cerca de três dias para fazer um kakashi, explicou Ayano-san. Ela começa pelo rosto, pegando um remendo quadrado de um tecido branco de malha jersey elástica, e o envolve num tipo enchimento usado para colchas. Depois de costurar a parte de trás, ela recheia mais o nariz, prega os botões no lugar dos olhos e molda os lábios apertando e costurando com habilidade o pano. Ayano-san toma um cuidado especial com as orelhas, dobrando e costurando o tecido para que tenham vincos individualizados. "Eu quero ter certeza de que meu kakashi possa ouvir bem", explicou com um sorriso.

Para os braços e pernas, ela amarra fios em tubos de jornais enrolados. Depois usa mais jornal para encher o torso. Quando o corpo está completo, ela o veste com roupas —desde cachecóis até quimonos elaborados— trazidas ou enviadas a ela por fãs de todo o Japão. Em seguida, coloca a figura no local que imaginou, utilizando arame para dispor os braços e as pernas na posição que deseja.

Quando terminou sua explicação, todos nós explodimos em aplausos. Seu sorriso encheu o quarto.

Desde então, eu voltei a Nagoro todas as primaveras, e nos anos seguintes, como outros estrangeiros também foram ao local, Ayano-san se tornou uma espécie de celebridade. Um cineasta alemão lançou um pequeno documentário sobre sua história em 2014, e uma dúzia de reportagens foram escritas (muitas das quais afirmam erroneamente que o pai dela faleceu —notícia que foi um choque para ele, que estava varrendo energicamente o quintal em minha mais recente visita em maio).

Relatos de outros escritores costumam usar palavras como "assustadoras" ou similares para descrever suas criações, mas como fui atraído até lá todo ano, meu entendimento amadureceu.

ÊXODO RURAL

A história de Nagoro não é única. Todos os anos, isso acontece em centenas de aldeias ao redor do Japão. As crianças que crescem nessas áreas remotas, lidando com as condições duras da vida rural, são seduzidas pelo fascínio das grandes cidades —conveniências, empregos, entretenimento— e deixam suas cidades natais para nunca mais voltar.

O dilema é comum, mas a resposta de Ayano-san é pura, sincera e única. Algumas vezes por semana, ela reúne tecidos, enchimento, jornais, linhas e roupas e começa a criar uma figura que representa uma avó ou avô querido que faleceu, ou uma criança que se mudou da cidade, ou até mesmo um visitante que deixou uma marca em seu coração.

Ela escolheu repovoar sua aldeia com esses espantalhos nada assustadores, e os enche de arte, alma e memória amorosa.

Com isso, ela simboliza a própria Shikoku, uma ilha belíssima, mas totalmente ignorada e empobrecida, cujos moradores enfrentam os desafios da vida cotidiana com desenvoltura e resiliência. Todos os dias em Shikoku, os agricultores plantam e colhem arroz, laranjas mikan, cogumelos shiitake, trigo, tomate e outras culturas, como há séculos; todos os dias, os pescadores partem antes do amanhecer e voltam à tarde com redes com um brilho prateado de savelhas, pargos e bonitos.

E na tradição mais conhecida da ilha, os peregrinos budistas andam por um circuito sagrado de 88 templos, em homenagem a Kobo Daishi, fundador de um ramo do budismo japonês, o Shingon. Enquanto caminham, eles são recebidos pelos moradores com sorrisos e presentes, como tigelas de arroz, laranjas e biscoitos para ajudá-los em sua jornada.

A seu modo, Ayano-san também oferece presentes para nos ajudar nas jornadas de nossa vida. Em minha visita a Nagoro em maio, encontrei outra moradora da aldeia e perguntei o que ela achava dos espantalhos.

"No começo, eles eram um pouco perturbadores, tanto para nós como para os visitantes", introduziu. "Mas eu acabei gostando e encontrando conforto neles. Reconheço as pessoas que faleceram, e é bom tê-las ainda aqui".

Naquela visita, Ayano-san novamente convidou a mim e meus companheiros de viagem para sua casa. Perguntei-lhe quantos espantalhos ela fez desde 2002. "Acho que uns 450", disse. "A cada três anos, tenho que substituí-los. Agora há 27 pessoas vivendo na aldeia - e 200 espantalhos!", contou com uma risada.

Um dos membros do nosso grupo perguntou se, caso o pai falecesse, ela voltaria para Osaka. Houve um longo silêncio e ela parecia perdida em seus pensamentos, com um olhar distante.

Finalmente respondeu: "Acho que não". Ela olhou para os campos, o ponto de ônibus, o depósito de madeira, a estrada de mão única, todos com mais vida devido a suas criações. "Estou muito contente aqui. Estou entre meus amigos."

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