Factoides

HUMOR: Caneladas verbais

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Eu não curto muito novela e não gosto de feijoada. Mas gosto de futebol.

(E de samba também. Espero que com isso minha carteirinha de brasileiro não seja cassada.)

Agora, vejam bem: eu gosto do jogo em si, não dos seus apêndices.

Você teria algum interesse em ver, sei lá, a Lygia Fagundes Telles fazendo embaixadinhas?

Pois então. Eu gosto de ver jogador jogando, não falando (chamando treinador de "professor", "se Deus quiser, vamos conquistar os três pontos", "sempre respeitando o adversário" etc.).
Abro exceção pra Dadá Maravilha --gênio inventor do dadaísmo-- e poucos outros.

Também odeio ouvir técnico filosofando (JOGABILIDADE).

Acho a maioria dos comentaristas uma máquina de clichês ("o time X está gostando do jogo", "o técnico não faz a leitura correta da partida", "falta uma jogada mais aguda").

OK, mesa-redonda às vezes é divertida, mas sinto saudade da época em que o Avallone usava tintura acaju. Combinava mais com o ambiente.

Só que, às vezes, gosto de ler sobre futebol.

E aí, como diriam os comediantes stand-up babacas, "tem uma coisa que eu não entendo".

Por que alguns jornalistas esportivos escrevem deste jeito ABSOLUTAMENTE IRRITANTE que você está lendo?

Uma frasezinha por vez.

Nada de orações subordinadas.

Tudo EXPELIDO aos pouquinhos, como se prisão de ventre fosse estilo.

Pode ser porque eles achem que seu público leitor é basicamente composto de débeis mentais.

Gente que tem que fazer um esforço SOBRE-HUMANO para digerir uma frase por vez.

Certo, esse pessoal das torcidas organizadas que se mete em confusão é tudo neandertal.

Mas é possível ter polegar opositor, telencéfalo altamente desenvolvido e gostar de futebol. Ao mesmo tempo. Juro.

Pode ser que quem escreve desse jeito --e subestima assim a inteligência dos leitores-- é que seja essencialmente debiloide.

E há uma terceira hipótese, ainda pior.

Os caras acham que, escrevendo desse jeito, estão fazendo POESIA.

Que basta separar cada frase para que elas REVERBEREM pelos espaços em branco da página e se transformem em lindos versos.

Provavelmente se sentem o próprio Homero compondo a Odisseia do futebol.

Só falta invocarem o espírito do finado Armando Nogueira.

"Vai, bola. Baila."


Ora, vão tomar banho na soda. (Cansei de escrever assim, dá medo de não conseguir voltar.) Não faço questão de que Nelson Rodrigues ressuscite, mas será que é pedir demais que o futebol, esse pedaço tão relevante do que antigamente se chamava "caráter nacional brasileiro", seja tratado com a inteligência que merece? Vale para o jogo em si, para as paixões que ele mobiliza e para tudo que há de bom e de ruim -violência, corrupção-- no seu entorno.

Você talvez não concorde com Bill Shankly, velho técnico do Liverpool, que dizia que o esporte "não é uma questão de vida ou morte --é muito mais importante que isso". Pode achar que é só um jogo. Mas a origem da poesia está nos jogos --as competições, o amor, a guerra (pesquisem lá, joguem "Grécia antiga" no Google). Então, honrem o jogo, escribas do meu Braziu: mais passes bonitos, lançamentos precisos e gols de placa, menos caneladas verbais.


RUY GOIABA quando criança, foi o maior perna de pau do Ocidente: corria pouco (por causa da bronquite), passava errado, chutava torto e acabava jogando no gol porque ali dava menos prejuízo ao time. Chegou a sonhar em ser um bom goleiro, mas só até os primeiros frangos. Em suma, amava o futebol, mas não era correspondido.

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