Tony Goes

Fernanda Young, a maluca de Deus

Em sua missa de sétimo dia, escritora me fez voltar a comungar

Fernanda Young posa para o renomado fotógrafo Bob Wolfenson
Fernanda Young posa para o renomado fotógrafo Bob Wolfenson - Bob Wolfenson
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

A igreja do Imaculado Coração de Maria fica na rua Jaguaribe, em São Paulo, na fronteira entre os bairros de Higienópolis e Santa Cecília. Um templo antigo, inaugurado em 1899 e que, na manhã deste sábado (31) lotou para um evento inusitado: a missa de sétimo dia de Fernanda Young

Famosos de diversas áreas, amigos de várias épocas e maluquetes em geral foram abraçar a família e rezar pela escritora. Tinha uma trans belíssima, um sujeito usando vestido e um outro com uma tiara de orelhinhas na cabeça. Quase o coquetel de abertura de um vernissage punk em uma galeria alternativa. 

Mas era missa mesmo. Celebrada por um padre moderno que ressaltou que Fernanda e o marido, o também roteirista Alexandre Machado, ajudaram muito na restauração da igreja centenária, pertinho da casa deles. 

Pois é, galera: além de tudo, Fernanda Young era católica. Uma maluca de Deus, e não há nada de contraditório nisso. Católico quer dizer universal; universal quer dizer para todo mundo. Mas há setores fortes no Vaticano que fingem não saber disso, e ainda pregam a exclusão. 



O discurso do padre sobre Fernanda me levou às lágrimas. Não sei o que me deu. Conhecia Fernanda há mais de 20 anos, mas nunca fomos próximos. Não a encontrava pessoalmente há mais de dois anos. Vi quase todas as suas séries, mas li só dois de seus livros. No entanto, sua morte me pegou de jeito.

De repente, eu me senti acolhido pela Santa Madre Igreja onde fui criado –e de onde saí por vontade própria, por não compactuar com o machismo e a homofobia explícitos. Mas, na manhã deste sábado, no Imaculado Coração de Maria, me deu vontade de fazer algo que eu não fazia há muito tempo: comungar. Então comunguei. Comuniquei-me, como diz a raiz latina da palavra. 

Após a comunhão, parentes e amigos deram depoimentos. Rita Lee –grisalha, curvada, voz tênue– leu a letra de "O Hino dos Malucos", de Fernanda e Alexandre, que ela gravou no álbum “Balacobaco” (2003). “Malucos, a nossa luta é abstrata / Já que afundamos a fragata / Mas temos medo de barata...”

Na saída, depois de muitos beijos e abraços, ainda ganhei um saquinho de balas e outro com cristais, um frasco com um pozinho azul e outro com um líquido verde, que eu ainda não descobri o que são. Manias de Fernanda. 

Também levei para casa uma rosa amarela e um poster com um desenho em que Fernanda aparece caracterizada como Nossa Senhora, com um dos filhos pequenos no colo. Do outro lado desse cartaz tem o "Poema do Menino Jesus", que foi lido por Maria Bethânia em uma gravação que abriu os trabalhos.

Saí mexido da Igreja, surpreso com o meu catolicismo renitente. Fernanda Young me fez voltar a comungar. A maluca de Deus continua realizando milagres.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

Final do conteúdo
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Ver todos os comentários Comentar esta reportagem